Pão-por-Deus
Lá fora há um dia de sol que me cumprimenta pela janela da sala. Melros que se penduram na vedação ou rasam a relva depenicando aqui e ali. A gata deitada a meus pés no tapete e a quietude que me retempera dos dias de alma gelada, acontecem esses dias, têm acontecido muito dias desses. E os cães ladram. Um ladrar díspar subitamente insistente. Vem aí gente, gente desconhecida. A gata inquieta-se como se cão fosse. Vem gente. Eu sei que eles hão-de vir. A campainha estridente. Vêm aí. Apuro o ouvido enquanto caminho para a porta. São eles. Em escadinha e de rostos sorridentes aparecem-me ao portão e olham com curiosidade quem os chama da porta de casa Venham cá! E vêm. Abrem os sacos de pano para onde vou depositando rebuçados, chupa-chupas, moedas de chocolate e línguas de gato, irmãmente distribuídos para cada um dos sacos e atentamente supervisionado pelos olhinhos brilhantes e bochechas rosadas. E lá vão arrastando os pés, chilreando como só eles e verificando a safra Já tenho muitas coisas ou Obrigada ou soltando verbalizações impensadas de que só as crianças são capazes Esta casa é muito engraçada, Finalmente alguém que nos abre a porta e um lamento Senhora, seja boazinha para nós que este é o último ano. Regressam os que no ano anterior vinham com as mães e tias, agora em bandos chilreantes, outros que assumiram o papel dos progenitores e orientam os mais pequenos na tradição. Alguns mais afoitos dão-me um beijinho e relembro-os Para o ano há mais! Tradição cumprida. Para o ano há mais. Lá fora há um dia de sol que me cumprimentou pela janela da sala. Cá dentro faz sol.