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Delito de Opinião

O ser e o nada

Pedro Correia, 31.03.09

  

Jade era uma rapariga inculta, sem instrução, nascida e criada numa família desestruturada. O pai drogava-se, a mãe também. Os horizontes dela esgotavam-se num sonho: a fama televisiva. Conquistou-a, num desses concursos que fabricam celebridades como se fossem pudins instantâneos. Jade apareceu na pantalha, sentiu-se realizada. Mostrou-se tal como era a milhões de espectadores: uma jovem inculta, grosseira. Insultou outra concorrente do programa com epítetos racistas, tornou-se a rapariga mais odiada da Grã-Bretanha. Exibindo tudo em directo – a grosseria, os modos suburbanos, a falta de instrução, o analfabetismo funcional. Chamaram-lhe todos os nomes.

Um dia adoeceu. Também em directo. O veredicto médico desenganou-a, ela chorou lágrimas verdadeiras defronte das câmaras que a devassavam. Tornou-se a rapariga mais amada da Grã-Bretanha. Todos sentiram pena dela. Decidiu casar em directo, já com as marcas da doença bem visíveis. Todo o país reparou nela: uns fizeram-lhe elogios, outros também. Um dia destes morreu. Depois de uma agonia também registada quase em directo. O povo chorou lágrimas verdadeiras por ela, até o primeiro-ministro lhe prestou um comovido tributo.
Era uma rapariga inculta, de horizontes estreitos, igual a tantas outras de tantos outros subúrbios de tantos países. Só tinha um sonho: ser famosa. Concretizou esse sonho simplesmente por aparecer na televisão. Em directo, sempre em directo. Nos dias de sorte e também nas horas amargas do infortúnio.
Jade era uma rapariga vulgar. E também um perfeito símbolo do nosso tempo, em que ser é aparecer. Há milhões de Jades por aí. Sonham com a fama instantânea, com a celebridade sem esforço, com o dinheiro caído do céu. Devassadas no ecrã. Amadas e odiadas no ecrã. Vivendo e morrendo no ecrã, para o ecrã, pelo ecrã. E em directo, sempre em directo.

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