Grandes contos (11): Rubem Fonseca
Pedro Correia, 29.10.11
Lirismo? Qual lirismo? Rubem Fonseca escreve sobre o lado escuro da vida, sobre o lado negro do mundo. As suas personagens são duras. E feias. E sujas. Portam-se mal. Batem, ferem, agridem. Matam.
Enquanto uns cantam loas à lua, ele vislumbra a face lunar do quotidiano. E transfigura-a de forma admirável nas suas narrativas, virando todas as convenções do avesso -- a começar pelas convenções literárias, transportando para as suas páginas de ficção a linguagem crua das ruas, dos morros, dos becos, das vielas. A Copacabana dele não é a "princezinha do mar" de que nos fala o samba-canção. A Avenida Paulista dele não tem néons faiscantes: tem vultos voláteis, agindo na sombra à revelia de todos os códigos e leis. Como assinalou António Alçada Baptista, que o apresentou ao distraído público português, a literatura dele "mergulha totalmente no perímetro da grande cidade e não é possível analisá-la sem ter presente a dimensão, o peso e a respiração do espaço urbano e da sua capacidade de segregação miasmática".
Este filho de transmontanos, que passou toda a vida em demanda das raízes ancestrais, introduziu na prosa brasileira, até então mergulhada em arcaísmos de toda a espécie ou viciada num exotismo de bilhete-postal, a vibração das grandes metrópoles, com a sua trepidação febril, os seus sons dissonantes e os seus equívocos morais. Características que estão patentes em romances admiráveis, como Agosto ou Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Mas são ainda mais nítidas na sua vasta galeria de contos, claramente influenciados pelos mestres do minimalismo americano e pelo filme negro, povoado de anti-heróis.
Um desses contos, obra-prima de contundência temática e concisão estilística, é Passeio Nocturno - aliás desdobrado em duas histórias que se complementam como faces de uma só moeda. Histórias que ilustram bem a "socialização da esquizofrenia" contemporânea a que Alçada Baptista aludia no prefácio ao livro Feliz Ano Novo (1975), onde foram originalmente publicadas antes de saltarem para várias antologias dos melhores textos de ficção brasileira.
Tudo começa como a mais banal das rotinas: "Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos". Mas cedo desemboca numa impiedosa violência, com um determinismo trágico. O autor sabe bem do que fala: a sua experiência como delegado de polícia ensinou-o a não ter ilusões sobre a natureza humana. E a ser um adversário implacável da retórica: nos seus textos não há um vocábulo a mais. Como diz uma das suas personagens, invertendo o cliché, "uma palavra vale mil fotografias".
Com Rubem Fonseca percebemos que o país do carnaval, do samba e do futebol também segrega monstros, aliás comuns a todas as latitudes. E não é um mundo longínquo: está à distância de uma simples porta de rua. Pode ser até um mundo que começa entre as quatro paredes de qualquer lar.
Enquanto uns cantam loas à lua, ele vislumbra a face lunar do quotidiano. E transfigura-a de forma admirável nas suas narrativas, virando todas as convenções do avesso -- a começar pelas convenções literárias, transportando para as suas páginas de ficção a linguagem crua das ruas, dos morros, dos becos, das vielas. A Copacabana dele não é a "princezinha do mar" de que nos fala o samba-canção. A Avenida Paulista dele não tem néons faiscantes: tem vultos voláteis, agindo na sombra à revelia de todos os códigos e leis. Como assinalou António Alçada Baptista, que o apresentou ao distraído público português, a literatura dele "mergulha totalmente no perímetro da grande cidade e não é possível analisá-la sem ter presente a dimensão, o peso e a respiração do espaço urbano e da sua capacidade de segregação miasmática".
Este filho de transmontanos, que passou toda a vida em demanda das raízes ancestrais, introduziu na prosa brasileira, até então mergulhada em arcaísmos de toda a espécie ou viciada num exotismo de bilhete-postal, a vibração das grandes metrópoles, com a sua trepidação febril, os seus sons dissonantes e os seus equívocos morais. Características que estão patentes em romances admiráveis, como Agosto ou Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Mas são ainda mais nítidas na sua vasta galeria de contos, claramente influenciados pelos mestres do minimalismo americano e pelo filme negro, povoado de anti-heróis.
Um desses contos, obra-prima de contundência temática e concisão estilística, é Passeio Nocturno - aliás desdobrado em duas histórias que se complementam como faces de uma só moeda. Histórias que ilustram bem a "socialização da esquizofrenia" contemporânea a que Alçada Baptista aludia no prefácio ao livro Feliz Ano Novo (1975), onde foram originalmente publicadas antes de saltarem para várias antologias dos melhores textos de ficção brasileira.
Tudo começa como a mais banal das rotinas: "Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos". Mas cedo desemboca numa impiedosa violência, com um determinismo trágico. O autor sabe bem do que fala: a sua experiência como delegado de polícia ensinou-o a não ter ilusões sobre a natureza humana. E a ser um adversário implacável da retórica: nos seus textos não há um vocábulo a mais. Como diz uma das suas personagens, invertendo o cliché, "uma palavra vale mil fotografias".
Com Rubem Fonseca percebemos que o país do carnaval, do samba e do futebol também segrega monstros, aliás comuns a todas as latitudes. E não é um mundo longínquo: está à distância de uma simples porta de rua. Pode ser até um mundo que começa entre as quatro paredes de qualquer lar.