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Delito de Opinião

Subsídios para uma teoria do direito ao pessimismo

Ivone Mendes da Silva, 23.10.11

A minha linha de pensamento é a do pessimismo moderado. Eu diria, até, bastante moderado. Acontece que uma tremenda constipação, ou gripe ou qualquer coisa do género, vem sempre acentuar, com escuro e sombra, a minha weltanschauung.

A coisa torna-se tão complicada que, em adormecendo, é fatal sonhar com Böcklin. Estão a ver aquele quadro de Arnold Böcklin, A Ilha dos Mortos? (Tenho de aprender a colocar aqui imagens). Sonho sempre com esse quadro, em qualquer uma das suas versões. E sou eu quem vai embrulhada numa mortalha pelas águas do esquecimento a caminho da morte. Provavelmente, isto terá cura, bastará ir ao médico e perceber o que me atinge quando uma constipação me atinge. Eu acho os médicos excelentes companhias para se beber um café e conversar um pouco, agora visitá-los no exercício da sua profissão já é coisa que evito. São demasiado generosos: a pessoa chega lá com uma dor e eles, solícitos, descobrem logo mais umas quantas nas zonas adjacentes. Adiante. Ontem, fui assolada numa constipação galopante.

A meio da tarde, toca a campainha. Eram umas senhoras de uma religião qualquer. Na semana anterior tinham passado por cá a querer dar-me conta de todos os motivos que existem para a felicidade e para a esperança. Procuro sempre ser diplomática nestas questões. Disse-lhes que estava ocupada e que na próxima semana, talvez, as pudesse ouvir. Pontuais, voltaram ontem. Eu continuei ocupada, e ocupada por uma constipação que não me deixava espaço para teologias.

Final da tarde, supermercado. Precisava de fruta e queria passar pela livraria adjacente em demanda da tradução, numa edição bilingue, de poemas de Emily Dickinson feita por Jorge de Sena que já vira por lá. Pois é, só que até chegar onde pretendia, atravessei corredores e estantes cheios de livros cujos títulos queriam obrigar-me a ser optimista, a olhar a vida com olhos esperançosos, a despertar energias positivas e outras bizarrias do género.

Saio de lá e encontro uma amiga que, rapidamente, diagnostica que estou muito em baixo. Claro: eu, já no meu estado normal, não sou nada que se aproveite quanto mais de nariz fungante, olhos lacrimejantes e olheiras indisfarçáveis. Nem me deu tempo de lhe chamar a atenção para o meu estado clínico, de imediato, levantou voo numa prelecção sobre a importância do pensamento fofinho num mundo desumanizado, ou qualquer outra coisa dentro dessa linha, porque, a certa altura, deixei de a ouvir.

Consegui, finalmente, chegar junto dos dióspiros enquanto tentava encetar um raciocínio. Há uma agressão permanente, feita de forma pouco subtil, ao ser pessimista. No meu caso, enfim, há um pessimismo transitório. Um pessimismo que, quer parecer-me porque também não sei tudo a meu respeito, vive das circunstâncias, mormente da minha apetência pela exposição às correntes de ar porque o fresquinho sabe tão bem. Mas, e quem é intrinsecamente pessimista? Não terá direito à fruição da descrença e da amargura sem ser permanentemente questionado pelos teóricos do vamos-ser-todos-felizes, armados de frases feitas?

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