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Delito de Opinião

Uma chave para decifrar o mundo

Pedro Correia, 27.09.11

    

 

Ouço com alguma frequência opiniões negativas sobre o ensino das religiões - e da religião cristã em particular. São opiniões que fazem tábua rasa de dois mil anos de história da Humanidade e que, se fossem levadas à letra, conduziriam ao desconhecimento generalizado de uma das nossas bases civilizacionais. A história da pintura, da escultura, da arquitectura e de parte significativa da música ocidental torna-se incompreensível a quem ignora os fundamentos do cristianismo e as inúmeras personagens dos livros da Bíblia. Isto nada tem a ver com crença -- tem a ver com cultura, no sentido mais lato, profundo e nobre do termo.

A ignorância das religiões -- em nome do princípio da laicidade levado ao extremo -- conduz até à incompreensão e à irrelevância de boa parte dos maiores autores ateus, agnósticos e anticristãos -- de Voltaire a Nietzsche. Leio, de momento, uma das obras mais emblemáticas de Karl Marx: está cheia de alusões bíblicas, provavelmente ininteligíveis para todos os apóstolos da "indiferença", que fogem da religião como o diabo da cruz em vez de procurarem entender a importância da religiosidade e da espiritualidade como parte integrante da condição humana, da criação artística e do pensamento filosófico através de todas as épocas - incluindo a nossa.

O Moisés, de Miguel Ângelo, a Última Ceia, de Leonardo, a Paixão Segundo São Mateus, de Bach, a catedral de Chartres ou a de Brasília (criada pelo ateu Óscar Niemeyer), para serem devidamente apreciadas enquanto veículos de fruição artística e emanações do melhor da nossa cultura, necessitam de referências que só o conhecimento das religiões (neste caso a religião cristã) nos proporciona. Isto vale também para a Mesquita Azul de Istambul, o Buda Reclinado de Banguecoque, Machu Picchu ou Angkor Wat.

Ao criticarem o estudo das religiões, os arautos desta tese estão no fundo a fazer a apologia da ignorância. Assumi-la em nome da "laicidade" é ainda mais grave. Por constituir uma perversão da genuína laicidade - a que vem expressa, pela voz de Cristo, nos Evangelhos: "Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus."

É uma frase muito antiga -- e tão "moderna" como se tivesse sido impressa no jornal desta manhã. Conhecê-la -- e saber por que foi proferida e os efeitos devastadores que causou numa concepção teocrática do poder político -- ultrapassa em muito o reduto da fé: é um acto de cultura. Da mesma forma que alguém sem o menor conhecimento bíblico é incapaz de interpretar esta extraordinária frase, contida num dos romances de Graham Greene: "Prefiro ter sangue nas mãos do que água como Pilatos."

Religião também é isto: uma chave para decifrar o mundo, uma pista para descobrirmos novos mundos. Às vezes longínquos, outras vezes situados bem próximo de nós.

 

Imagens: Voltaire e Nietzsche

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