"A thing of beauty is a joy forever"
Terminei ontem a leitura de As luzes de Leonor de Maria Teresa Horta. Acho que o li bem, que é o melhor tributo que se pode prestar a um livro e a um autor.
O romance de época, e eu vou designar assim a narrativa cuja acção se situa num tempo diverso do do autor, cria a quem se dispõe a entrar por essa via, uma exigência de proximidade.
Tomemos exemplos diferentes. O que fez de O Nome da Rosa um best-seller ? A proximidade entre Umberto Eco e o mundo medieval, seu objecto de estudo desde sempre. O ser-lhe tão comum, tão presente, aquele mundo de bestiários e monges sábios fez com que leitores diversos se tivessem comprazido na leitura de um texto entremeado de frases latinas e pautado pelas horas canónicas. Dir-me-ão que alguns leitores mais não leram do que o enredo policial. Claro. Só o leitor usado, no sentido camoniano do termo, a uma prática sistemática de leitura descodifica, num relance, as pequenas redes semióticas que fazem as delícias deste romance: Jorge-cego-biblioteca-labirinto-Burgos-Borges, Guilherme-Baskerville-o-cão-dos-Baskerville-Sherlock-Holmes; só o leitor preparado vê Aristóteles em Guilherme e Platão em Jorge e vislumbra a filosofia moderna na figura de Adso de Melk, o alemão com o nome construído sobre um verbo latino, que colhe no passado o que há-de escrever pelo seu punho futuro.
Mas o que trouxe tantos leitores ao livro? O facto de Eco estar tão à vontade dentro do pensamento de Umbertino de Casale como se estivesse sentadinho à sua secretária. Só se mostra bem aquilo que se vê bem.
Vejamos, agora, Bomarzo de Manuel Mujica Lainez, que li na excelente tradução de Pedro Tamen. É um romance fabuloso, na minha opinião. Reconstrói, pelo fio da memória do duque de Orsini, toda a Renascença italiana, nas suas mutações de beleza e de bestialidade, de monstros e quimeras. O trabalho de Lainez é um admirável exercício de imaginação sobre um trabalho apurado de investigação, servido por um léxico quase, quase a aflorar o gongórico mas que se detém sempre antes do excesso. Aqui, a exigência de proximidade é feita ao leitor.
Dir-me-ão: “Sim, claro, pois não havias de ter apreciado. Tu és muito lá dos lados da Renascença. Pensas mais no Lourenço de Médicis do que no Bernard Henry-Lévi.” É verdade, (enfim, a parte final nem tanto) a Renascença é muito cá de casa. Mas o livro de Lainez puxa o leitor lá para dentro, suga-o para um mundo que, se lhe era desconhecido, passa a não ser. Exige-lhe a proximidade.
Estou, ainda, a pensar em Adivinhas de Pedro e Inês da Agustina. Há dois ou três parágrafos nos quais a narradora, com umas referências aos cães que ladram no pátio, aos falcoeiros e ao barulho dos cascos no empedrado, provoca um efeito de sucção que nos faz aterrar, de repente, em pleno séc. XIV, quer queiramos quer não. Mais do que próximos, ficamos lá.
Maria Teresa Horta é, em As luzes de Leonor, naturalmente próxima: a marquesa de Alorna foi bisavó do bisavô de Maria Teresa, se não me estou a enganar nas contas. Haverá, necessariamente, no imaginário familiar da autora uma presença forte da figura de poetisa das luzes. Há, na obra, uma intenção clara de não dissociar a autora da narradora: “… eu não faço a tua biografia: tento recriar-te, minha avó, inventando-te do grão da luz ao bago da romã.” Essa recriação a que alude demorou treze anos a fazer. Muitos anos de investigação e de escrita. A autora seguiu a sua figura ao longo de um percurso marcado por acontecimentos históricos, momentos documentados, cartas e silêncios. E entrou nos silêncios e encheu-os de luz. Porque dos silêncios de Leonor sabe Maria Teresa muito bem, melhor do que ninguém, são os silêncios da condição feminina num tempo que lhe é adverso.
Mesmo que não tivesse mil páginas, As luzes de Leonor continuaria a ser um grande romance.
Sim, meus caros, eu sei: a Grécia e a crise e o euro e a vida. Eu sei, também pago a conta do água e o meu subsídio de Natal vai descer aos Infernos. Mas sem a literatura, sem a arte, tudo me seria ainda mais difícil.