Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Por um punhado de romãs

Ivone Mendes da Silva, 05.09.11

Para quem não tem presente, eu conto: Proserpina ( vou usar o nome latino das personagens para não haver confusão ali com os dracmas do Rui)  andava a colher flores no campo. Plutão, deus ctónico, ascendeu à superfície para dar uma vista de olhos pelo mundos dos vivos. Subiu por uma fenda da terra (ex hiatu terrae  para quem ainda vem do tempo do Latim no liceu, lembram-se?), olhou em volta, viu a donzela e as flores e pensou que não era nada má ideia levá-la lá para baixo, para o meio das sombras gemebundas.  Os deuses da mitologia greco-latina são assim um bocadinho para o precipitado. Plutão nem se deu ao trabalho de pensar se a rapariga das flores tinha quem lhe chorasse a ausência. E tinha: era filha da deusa Ceres, a que dava as flores e os frutos aos homens. O resto da história é conhecido. A deusa, inconsolável, percorreu a terra em busca da filha, demanda essa que teve nefastas consequências, pois que Ceres, esquecida das suas atribuições, não fazia germinar as sementes nem crescer as árvores e, sobre a terra, a iminência da fome começava a fazer-se sentir.

Foi Júpiter quem teve de pôr fim àquele descalabro, concertando entre a mãe e o raptor uma solução: Proserpina passaria metade do ano nos Infernos e a outra metade à superfície. Pois é, a alternância das estações é apenas isso: quando Proserpina está junto de Plutão, as árvores perdem as folhas e a natureza parece chorar; depois, quando ela volta para a mãe, tudo reverdece e são abundantes os frutos e as flores.

Há, todavia, pormenores que não vinham no livro de Latim do liceu. Há sempre pormenores que não vêm nos livros do liceu. Quando Proserpina chegou lá abaixo, primeiro, achou que era um bocadinho escuro e frio e, enfim, um deus dos mortos também não há-de ser uma companhia muito calorosa, não sei, digo eu que nunca privei com deuses ínferos. Plutão, todavia, resolveu mostrar trabalho e rodeou a deusazita de cuidados. Arranjou-lhe um sítio bom para ficar, deu-lhe atenção, conversou com ela e, melhor ainda, trouxe-lhe rutilantes romãs que ia descascando, descascando, sem se cansar, que isto de ser deus sempre há-de ser uma vantagem. Proserpina comia os bagos doces e sedosos das romãs e esquecia, aos poucos, o mundo dos vivos. As romãs tinham essa propriedade desmemoriante na antiguidade; hoje em dia, não sei se ainda a possuem. Verdade seja dita, a moça já andava um bocado farta daquela euforia estival em que a mãe a arrastava de sol a sol.  Muita luz, muita festa, muita gente. Não sei se ela terá arranjado, lá no mundo dos mortos, alguma amiga a quem tenha feito confidências do género: “Ah, eu andava muito farta de toda aquela luz, aquela agitação. Aqui estou como se morasse no blogue do Filipe Nunes Vicente, λάθε  βιώσας, estou numa boa, sem confusões.”

Deduzo que se terá aborrecido com a decisão que tomaram sobre a vida dela sem a terem consultado.

Cá para mim, mais algumas romãs teriam feito toda a diferença. Talvez ela tivesse passado daquela ataraxia complacente e tivesse exigido, pelo menos, mais três meses longe do sol e do solo.

Mas isto digo eu, que gosto é do Outono.

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.