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Delito de Opinião

Um sítio bom para morrer

Ivone Mendes da Silva, 23.08.11

Há pouco, quando desci para ir beber café, ouvi uma senhora dizer para outra: “Já lhes disse que, quando chegar a minha hora,  quero é morrer em casa na minha cama.” Pelo tom calmo da frase, deduzi que aquele “quando chegar” se referia um hipotético futuro e não a um previsível desfecho à vista.

Já ninguém morre em casa. Pensei num quadro que está no Museu Nacional de Arte Antiga que, quando o vi, me fez lembrar uma canção de Aznavour, “La Mamma”. O quadro, cujas referências não tenho de memória, intitula-se “O passamento da Virgem”. É um daqueles quadros de temática mariana que representam os momentos marcantes da vida da Virgem Maria. Naquele, a Virgem agoniza num leito deslocado para o lado esquerdo do quadro. Em redor, a vida doméstica não parece sofrer alterações: os quartos de uma maçã e a sua casca repousam num prato sobre a mesa, uma mulher cozinha junto à grande lareira acesa, umas galinhas passeiam por ali no meio de uns brinquedos de criança, uma cesta de fruta entorna-se pelo chão. Quando olhei para o quadro achei-o ingénuo, mas, depois, olhei para ele com os olhos de outro tempo. Um tempo em que a morte, melhor, o morrer estava presente na domesticidade que não se alterava nem se detinha. Por isso, o leito da moribunda não era o centro do quadro, o centro do quadro era aquela grande cozinha, metáfora da vida, que olhava para um moribundo como para uma cesta de fruta caída à passagem apressada de alguém.

Em “La Mamma”, Aznavour também canta a morte a acontecer num espaço doméstico. Mas num espaço que se organizou para a receber, que se virou todo para ela, ao contrário das mulheres que, no quadro lá de cima, continuam imperturbáveis os seus afazeres. Naquela toada mediterrânica e solar, o cantor diz-nos que  la mamma vai morrer, que vieram todos, até  Giorgio, le fils maudit, que as crianças brincam em silêncio junto do leito, há um oncle guitarriste qui joue en faisant attention à la mamma. E conclui que c’est drôle, on ne se sent pas triste, prés du grand lit de l’Affection.

Estas mortes assim representadas não existem mais. A tipologia das casas modernas relegou o quarto do moribundo (como também o leito da parturiente) para o exterior, concentrou-se no percurso da vida, não nas suas extremidades. Ainda bem, digo eu,  se me deixar de lirismos. Antes a assepsia branca e eficaz de um hospital indiferente, onde alguém nos deixou para que fôssemos cuidados, do que ser, inaudível e esquecida, uma progressiva mancha de fluidos corpóreos decompostos na solidão do soalho flutuante.

O que me incomoda, ao de leve, é não haver um ponto intermédio. Morre-se cada vez mais tarde, devia morrer-se cada vez melhor.

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