Há livros estranhos. Há aqueles que nunca devíamos ter lido, aqueles que nos deixam a lamentar o dinheiro desperdiçado quase como uma traição perpetrada pelo escritor, sim, como foi capaz de fazer uma coisa daquelas?, os que lemos e relemos, companheiros que dormem connosco sonos grandes na mesa-de-cabeceira ou que ficam inadvertidamente na cama entre voltas e sonhos inquietos, os de que nos esquecemos quase a seguir à leitura e permanecem apenas em traços largos num enorme borrão indefinido, os que nos deixam frases e expressões que procuramos desesperadamente quando nos fazem falta ou os que deixamos com post-its para que seja mais fácil encontrá-las. Há ainda aqueles que mesmo não sabendo muito bem porquê não nos largam. E este foi um desses.
O livro é um catálogo de Museu erigido pelo amante à sua amada. Um altar de recordações coleccionadas ao longo de décadas, um santuário de pequenas relíquias, o cadinho das memórias perpetuadas. Uma longa e sofrida declaração de amor no masculino. Tão surpreendente sempre. E depois há o tempo, o tempo de mudança em Istambul e na Turquia, o relato de décadas de história, entrelaçado em Kemal e Füsun, as personagens principais. E depois há a cidade. O périplo constante por Istambul, um daqueles livros em que podemos pegar num mapa e situar, seguir, caminhar, calcorrear os locais com as personagens. Subir e descer ruelas, sob a presença altaneira dos minaretes e o cantarolar dos muezzin, o Bósforo sempre a espreitar numa das cidades belas, contraditoriamente belas e caóticas. Que terá aquela cidade? E depois há hüzün, sentimento de nostalgia que quase podia ser saudade. Muito, portanto. E fiquei no livro. Meses depois de o ter devolvido à estante ainda estava no livro. E em Kemal. E em Füsun. E em Istambul. Perdida na visita a 'O Museu da Inocência'. Uma parte de mim ficou ali. A cidade talvez. Quem sabe o amor.
Orhan Pamuk, O Museu da Inocência.
fotografia minha