Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

O papagaio e o bastardozinho

Pedro Correia, 16.08.11

 

Vou relendo vagarosamente Os Maias, saboreando cada página, cada parágrafo, cada frase. Há livros que lemos na adolescência, como comigo foi o caso deste, a que é indispensável regressar na idade adulta. Porque aquilo que nos interessava então deixou de nos interessar tanto agora – o enredo, a trama, as peripécias amorosas – e cada capítulo volta a ser uma fascinante descoberta de pormenores. Com as grandes obras da literatura é assim: quando as lemos, de alguma forma elas também nos lêem a nós.

É um Portugal antigo, muito datado, que emana destas páginas. Mas é também um Portugal contemporâneo, um país que teima em ser intemporal para além de todos os ciclos e de todas as modas. Como se nos víssemos ao espelho. Paradoxalmente, sendo um escritor realista, que descrevia com minúcia lugares emblemáticos e situações características da sua época, Eça de Queirós - falecido faz hoje 111 anos - é também um escritor eterno. Porque foi capaz de apreender e captar aquilo que permanecia imutável para além da ilusão das aparências. Costuma-se dizer, neste sentido, que é um “escritor actual”. Nada mais certo.

E depois há a linguagem. A saborosa, inconfundível linguagem queiroseana. Eça, como sucede aos maiores escritores, reinventou o idioma, dando-lhe graça, verve e colorido. Basta o primeiro capítulo d’ Os Maias para detectar isto. Em expressões como “a paz dormente do bairro”, “aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol”, “uma impressão de causar aneurismas”, “era um amor à Romeu”.

E há ainda a ironia – a célebre ironia de Eça, que tantos tentaram imitar sem o menor sucesso. Por ser tão pessoal, por ser tão intransmissível. Também patente logo no capítulo inicial. Afonso da Maia, irritado com a beatice da mulher: «Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire.» O filho, Pedro, passando de menino atinado a adulto devasso: «Foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardozinho.» E até ao conhecermos um dos animais domésticos lá de casa: «À janela o papagaio, muito patuleia e educado por Pedro, rosnava injúrias aos Cabrais.»

Em tempo de papagaios com novos motes e de outros bastardozinhos, revisitar esta obra-prima é um prazer inesgotável: eis a melhor forma de mergulhar, através da literatura, no Portugal de sempre.

34 comentários

Comentar post

Pág. 1/2