Cale
Na A1 em direcção ao Norte, rumo a esse trópico imaginário com nome alquímico: férias. Os preliminares enjoam-me. E o cansaço, este ano, devorou qualquer réstea de festa antecipada. -Quando conseguirei eu partir sem mais, de mãos a abanar, livres para agarrar tudo o que me espera? Excesso de bagagem. Malas mentais, a abarrotar de peso. Felizmente, neste percurso só há controladores de velocidade e flashes devassadores que disparam instantâneos sobre o meu carro, e os de todos nós, os que desafiamos o limite estabelecido por decreto. Não há check-in nas autoestradas portuguesas (ai, se descobrem e se lembram, como se lembraram da via verde). Apesar de tudo, vou decidida mas de olho vivo em tudo e todos, não vá um doido quebrar o manual de sobrevivência do infractor, tacitamente aceite pelos viajantes do asfalto.
Saí pela fresca. A tardinha garante-me a paz de que preciso. Não gosto de calor e o ar condicionado faz-me mal. Prefiro a janela aberta, o vento na cara, a estrada razoavelmente livre e o Venham Mais Cinco em altos berros no leitor (ninguém ouve). Nas duas faixa S-N, o espectáculo de sempre: pesados a ultrapassar pesados, obrigando os ligeiros a travar, a bufar, a reduzir drasticamente a velocidade para que os tontos possam brincar impunemente. Passo o Porto, e o dédalo de entradas. Desta vez, nada com ele. Quero é a ponte do Freixo, a última cortada. A ver se não me engano na entrada para a A3 (eterna ratoeira para quem circula sempre pela esquerda). Feito. A preceito. E então sim, suspiro, num arremedo de felicidade, porque me sinto a passar a barreira da atmosfera. Estou finalmente em terras do condado. Há lá força telúrica que se compare a isto... Começo a cantar alto e o parceiro do lado acorda, estremunhado (dorme sempre, num cumprimento à qualidade da minha navegação terrestre... gosto de pensar que é disso). Nomes deliciosos: Cruz. Celeirós. Um rio, Labriosque. Passos. Martim. Um pouco mais e pronto: eis-me chegada a estas paragens onde tudo é verde, tudo é granito escuro, a fazer brilhar hortênsias e glicínias, onde tudo é água e em suma, profusão. Agora, sim, apetece-me andar a 40. Quero sentir o cheiro forte a eucalipto, ouvir os cigarrais, gozar a noite fresca e perder-me a olhar o céu despudoradamente transparente, exibindo aquele disco branco, enorme, que me confirma a entrada num outro reino de grandezas. Essa lua diferente, imensa, nova-rica do espaço sideral, que teima em vir comigo estrada fora, até chegar ao portão verde da casa onde me aguardam.
Boa noite às coisas aqui em cima. Soou a minha hora!