Parece escrito por um iletrado
Raras vezes temos oportunidade de perceber o que um ditador contemporâneo verdadeiramente pensa da democracia. Em regra, impera o cinismo: estabelece-se a ditadura entre proclamações de suave apego aos valores democráticos. O Livro Verde de Muammar Kadhafi tem o mérito - que será, provavelmente, o único - de nos revelar um ditador que não reconhece nenhuma vantagem na democracia tal como a conhecemos em qualquer parte do mundo. E chega até ao requinte de anunciar que a democracia é a verdadeira ditadura, enquanto a ditadura dele é a verdadeira democracia. Eis-nos mergulhados num universo concentracionário, versão alternativa do 1984 de George Orwell com as suas palavras de ordem alucinadas: "Guerra é paz", "ignorância é força" e "liberdade é escravidão".
Este livrinho com boa encadernação impresso em Portugal por decisão das autoridades líbias, que o distribuíram em vários idiomas por diversos países, tem a pretensão de se assumir como a "Terceira Teoria Universal", sem especificar quais foras as outras duas. Está dividido em três partes: política, económica e social. A primeira "assinala o início da era das massas", a segunda "inaugura uma revolução económica internacional", a terceira "desencadeia a revolução social". Não se contenta com menos. "Apresenta a genuína interpretação da História" e "debruça-se sobre a solução do problema das minorias e dos pretos (sic), de modo a estabelecer os princípios firmes da vida social para toda a Humanidade".
A leitura é penosa. Por este simples motivo: o estilo é do mais rudimentar que há. Felizmente o livrinho - a bíblia da ditadura de Kadhafi, inaugurada em 1969 - tem apenas 120 páginas. O homem que não hesita hoje em aniquilar parte do seu povo, depois de durante décadas ter apoiado o terrorismo internacional, exprime aqui o seu ódio aberto à democracia representativa, ao sistema partidário e à legitimação dos políticos pelo voto popular. "Os parlamentos são a falsificação da democracia", escreve na página 9, concluindo com humor involuntário: "As ditaduras mais tirânicas que o mundo tem conhecido foram estabelecidas à sombra de assembleias parlamentares."
Cruzando o messianismo político e um nacionalismo de pacotilha com um vago "socialismo" na economia, Kadhafi sintetiza o seu programa político numa frase que nos esclarece bem sobre o verdadeiro ideário deste "líder" que durante largos anos seduziu importantes sectores da esquerda mundial (incluindo, naturalmente, a errática esquerda portuguesa): "A verdadeira lei de uma sociedade é o costume ou a religião. A Constituição não é a lei da sociedade." (p. 31)
Este livro não possui qualquer mérito literário: na verdade, em muitos trechos parece ter sido escrito por um iletrado. Também não revela qualquer mérito histórico ou sociológico: Kadhafi não se dá ao incómodo de citar um autor, de invocar um dado estatístico ou aludir sequer a algum acontecimento histórico, tirando uma vaga alusão à Revolução Industrial. Por vezes, julgaríamos estar perante um banalíssimo livro de auto-ajuda: "A Terceira Teoria Universal é o anúncio às massas da salvação final de todas as formas de injustiça, despotismo, exploração e hegemonia política e económica."
Pura charlatanice. O verdadeiro mistério é conceber nos nossos dias o que terá levado este coronel a ser apresentado outrora como figura inspiradora a milhões de fiéis no mundo inteiro. Lido hoje, o seu Livro Verde parece cheio de verdete.