Diário irregular
23 de Julho
“É a altura de comunicar a este conselho, em absoluta e total confidencialidade, com perdão da redundância, que os serviços de espionagem que se encontram sob as minhas ordens, ou melhor, que dependem do ministério a meu cargo, não excluem a hipótese de que o sucedido tenha as suas verdadeiras raízes no exterior, que isto que estamos vendo seja só a ponta do icebergue de uma gigantesca conjura internacional de desestabilização, provavelmente de inspiração anarquista, a qual, por motivos que ainda ignoramos, teria escolhido o nosso país como primeira cobaia” – José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez
Nada assume tantas formas quanto o ser humano. Só o Criador conhecerá as razões porque há coincidências tão estranhas na vida que melhor poderiam ser chamadas como intermitências da morte. Como o livro. Na mesma altura que um homem é eliminado numa prisão norte-americana pela violência que gerou contra inocentes abatidos à queima-roupa, ao jeito de vendetta, em razão da carnificina do 11 de Setembro e apenas por serem de aspecto ou possuírem nome árabe, um outro homem preparava-se para perpetrar mais um brutal atentado contra outros igualmente inocentes, gente indefesa, jovens, numa outra latitude, mas muitos deles também de origem ou nome árabe. O que aproxima esses actos é o mesmo que nos transforma em bestas. A violência. O extremismo, a cegueira ideológica, é a máscara que permite chegar ao fim o que devia morrer à nascença.
Enquanto escutava a voz melodiosa de Sofia Escobar, numa húmida noite de Verão, via desfilar as imagens das últimas vinte e quatro horas. O contraste não podia ser maior. Quantos dos que ali estavam pensariam no mesmo?
Os últimos tempos têm revelado a existência de sociedades livres e democráticas onde a violência coexiste com a mais absoluta quietude. Acreditar que numa democracia a existência de leis, tribunais e polícias, num quadro de instituições funcionando regularmente, permitiria considerar a violência controlada, nunca passou de uma utopia. Para que serve uma democracia se o funcionamento regular das suas instituições não consegue garantir a segurança dos indefesos ou o controlo da violência? Uma democracia que se mostra incapaz de garantir a vida é uma democracia que claudica na sua tarefa primordial. E apesar disso a liberdade continua a ser um meio de controlo da violência.
Ainda só passaram trinta dias. Durante estes trinta dias, com excepção das crises de já se falava antes, e de futilidades, só se falou dos dois membros do Governo mais próximos do primeiro-ministro, de privatizações, agentes secretos e lojas maçónicas. Por causa disso vem aí novo inquérito.
A explicação dada foi pouco perceptível. Fiquei sem saber se esse inquérito visará a actividade conhecida dos “serviços secretos” ou a actividade conhecida de alguns homens que trabalharam para os “serviços secretos”. Também há a hipótese de visar a obtenção de informações sobre a circulação de “agentes secretos” entre a República e empresas privadas. Ou a qualidade da informação disponibilizada por esses “serviços secretos” a terceiros. Ou, quem sabe, as condições de trabalho e de formação oferecidas pelo “mercado” a ex-deputados e a “agentes secretos” nos intervalos das “operações secretas”, tendo em vista a revisão da legislação laboral.
Em todo o caso, antes que alguém venha dizer que há uma diferença entre conhecimento formal e informal, oxalá que o primeiro-ministro possa pedir ao instrutor do inquérito a respectiva “agilização”. Depois do que aconteceu há uns anos com a divulgação de uma lista de espiões e de em Belém se ter descoberto um “espião” do seu antecessor, que ia à Madeira tomar notas das conversas alheias sob o olhar desconfiado do Presidente da República, os nossos “serviços secretos” ficaram com a notação suspensa. Seria trágico se numa altura destas as agências de notação baixassem o rating de alguns colaboradores do primeiro-ministro para a categoria de “lixo”. José Saramago já cá não está.