Diário irregular
8 de Julho
Esta semana a morte veio ter connosco. Como se tudo e toda a desgraça tivesse de ser completada com essa imagem do esqueleto encapuzado que vagueia pela noite de gadanha em riste. Maria Filomena Mónica lançou mais um livro na excelente colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mas essa foi a forma mais benigna que ela assumiu.
Ver os que partem na flor da idade, mesmo quando não os conhecemos, pelas razões mais estúpidas, ou os que a doença foi minando numa altura em que ainda teríamos tudo a esperar deles, rouba o espaço da racionalidade transmitindo-nos uma sensação de desamparo e de injustiça que nos pode levar a tudo questionar. Ainda quando a fé se coloca de uma forma tão pura quanto aquela que Maria José Nogueira Pinto nos legou na hora da partida. A aceitação da morte, por mais preparado que se esteja, continua a ser uma confrontação com a nossa pequenez, com a efemeridade da matéria. E para os que ficam nunca há preparação suficiente. Se ela chega aos vinte, aos trinta ou aos cinquenta, quando se tem toda uma vida pela frente, que diferença é que isso faz?
Hoje também partiu o João Marcelo. Lembro-me dele, percorrendo os corredores da Faculdade de Direito, ou subindo a meu lado as escadarias da Aula Magna para entregarmos ao reitor, nós e mais umas centenas de estudantes que nos seguiam, um tabuleiro com uma das miseráveis refeições que a Cantina Velha naquele tempo nos proporcionava, durante um célebre levantamento de rancho, no início dos anos Oitenta, que mereceu honras no Correio da Manhã. De outras vezes, via-o de capa preta, distribuindo folhetos de apoio à sua lista de raízes anarquistas ou de protesto pelas atitudes de Soares Martinez. Durante muito tempo foi a sua besta negra lá dentro. Dele e do Prof. Oliveira Ascensão. Com o André Bandeira marcaram uma época em Direito. Pela irreverência e coragem com que enfrentavam o “sistema”, sempre desalinhados, mas nem por isso menos temidos. Sei que se distinguiu na advocacia, que se integrou, e que continuou a intervir politicamente. Sempre do mesmo modo, directo, frontal, por vezes raiando a loucura. Até hoje. Aos cinquenta e um ainda devia ser proibido morrer. Como também aos quarenta e três. E logo de septicemia na sequência de um enfarte. A morte devia ser vedada aos que acreditam, a quem tem convicções e se bate por elas, sempre e em quaisquer circunstâncias. A morte é sempre um empecilho num projecto.
Foi o culminar de mais um dia, de uma semana em que a morte também passou por aqui, ou a sua ameaça, sob a forma de uma miserável notação de uma agência, ensombrando o nosso futuro. Remetendo-nos à condição desprezível de lixo. Ser lixo é uma outra forma de morrer. De cair. Como o pacote de plástico na canção de Chico Buarque, quando desafia as leis da gravidade. Depois as coisas voltam à normalidade. Como sempre. O ciclo recomeça. E tudo volta a ser matéria. E vida. Mesmo a morte. E isso também pode ser reconfortante nalguns momentos. Como é este o caso.