Pouco tempo antes de morrer, ao estilhaçar a cabeça com uma espingarda de caça, Ernest Hemingway escreveu um hino à vida que é uma declaração de amor simultânea a uma cidade e a uma mulher. A cidade era Paris, a mulher era Hadley Richardson – a primeira das quatro com quem casou. Paris É uma Festa – assim se chamou este livro-testamento que nos transporta à idade de todas as ilusões. Década de 20 do século passado: a Grande Guerra terminara, ninguém imaginava que pudesse ocorrer outro conflito ainda mais sangrento, Paris fervilhava de uma juventude inquieta e irrequieta, a que Gertrud Stein decidiu chamar “geração perdida”. Entre os milhares de expatriados que acorreram à Cidade Luz encontrava-se um jovem jornalista do Illinois com aspirações a escritor. Ernest Miller Hemingway.
“Se na juventude alguém teve a sorte de viver em Paris, a cidade irá acompanhá-lo pela vida fora, vá para onde for. Porque Paris é uma festa móvel”, escreveu Hemingway a um amigo em 1950. Ele teve essa sorte: viveu em Paris entre Dezembro de 1921 e Março de 1928, dos 22 aos 28 anos. A melhor época da vida, e um dos raros períodos de bonança num século de tantas tempestades. Três décadas depois, no seu refúgio cubano, regressou a esses dias em que ele e Hadley eram “muito pobres e muito felizes”, dando corpo a um dos melhores livros de memórias de todos os tempos. Foi o seu primeiro livro póstumo – e também o que teve mais sucesso. A viúva, Mary, editou-o em Maio de 1964: com um tiragem inicial de 85 mil exemplares, Paris É uma Festa permaneceu até Dezembro na lista de best sellers do New York Times, com 19 semanas consecutivas (entre Junho e Outubro) no primeiro lugar. Ernest, que tantas vozes deram por acabado antes de tempo, gostaria de ter testemunhado o sucesso desta evocação nostálgica de Paris, a cidade onde ocorreu o seu baptismo literário. Viajamos com o autor aos seus humildes apartamentos da Rue Cardinal Lemoine, 74 (a sua primeira morada na capital francesa) e da Rue Notre Dame-des-Champs, 113. Acompanhamo-lo nas suas peregrinações por cervejarias e cafés onde se sentava horas a fio, concentrado na escrita. Conhecemos uma cidade ainda cheia de marcas rurais, onde pastores ordenhavam cabras que proporcionavam leite fresco ao domicílio e as margens do Sena se enchiam diariamente de pescadores. Hemingway confessa ter passado fome nesses dias em que era apenas um aspirante a escritor. O pior eram os odores que se libertavam dos restaurantes: “Nessa altura o melhor sítio para passear eram os jardins do Luxemburgo, onde não se sentia o cheiro da comida.”
Ficamos a saber, por este livro, quais eram as leituras do jovem Hemingway. Alguns amores: Filhos e Amantes (D. H. Lawrence), A Cartuxa de Parma (Stendhal), Guerra e Paz (Tolstoi), Impressões de um Desportista (Turguenev), O Jogador (Dostoievski). Sempre obras de Kipling, seu autor de cabeceira. E A Casa do Canal, de Simenon. Depois dos amores, os desamores: Aldous Huxley e Katherine Mansfield, por exemplo. Mais interessante ainda é a vasta galeria de escritores então residentes em Paris com quem Hemingway estabeleceu relações de amizade. Só duas dessas relações perduraram: com Ezra Pound ("o escritor mais generoso e desinteressado que conheci") e James Joyce. Dos restantes, traça retratos impiedosos - de Scott Fitzgerald ("sempre bêbedo, quer de dia quer de noite") a John dos Passos ("possui o treino insubstituível do patife"), passando por Jean Cocteau, Blaise Cendrars e Ford Madox Ford, que o interpelou bem cedo contra o hábito de beber aguardente ("pode levá-lo à ruína"). A capital francesa esteve sempre presente na obra de Hemingway - nas páginas d' As Neves do Kilimanjaro e Ilhas na Corrente, por exemplo. Mas nunca de forma tão evidente e tão obsessiva como em Paris É uma Festa, sem dúvida o seu melhor livro de não-ficção. Um livro curiosamente escrito na primeira pessoa do plural, como se Hadley (que viu pela última vez na década de 30) tivesse estado a seu lado quando o escreveu. O que talvez explique o tom seco e lacónico de Mary Hemingway na pequena nota informativa que abre o volume: a viúva dificilmente suportou esta prova de que Ernest nunca deixou de estar apaixonado por Hadley, numa confirmação de que não existe amor como o primeiro. O que é tão válido para as mulheres como para as cidades.
Texto reeditado no dia do 50º aniversário da morte do escritor.