O sorriso do são bernardo
José António Abreu, 19.06.11
Em Gronergrat, no Sul da Suíça, a 3089 metros de altitude, recordo-me de como, em Milão, na Pinoteca Ambrosiana, um quadro de um velho e um cão me chamara a atenção. Apropriadamente, chamava-se (bom, chama-se, que ainda lá deve estar) Vecchio com cane. Trata-se de um pequeno óleo sobre tela de 45 por 54 centímetros, pintado por Domenico Induno (1815-1870), alguém que permanece quase desconhecido para mim, visto nem a informação na Pinoteca nem a internet terem sido de grande utilidade. Há na Ambrosiana obras de gente muito mais famosa, como Botticelli, Raffaello, Tiziano, Caravaggio, Da Vinci ou Jan Brueghel, o Velho, defronte das quais se é forçado a parar quase religiosamente, nem que seja para depois se poder dizer tê-las visto. Ainda assim, se apreciei muitas das obras destes mestres (La Madonna del Padiglione, de Boticelli ou umas fantásticas Allegoria dell'acqua e Allegoria del fuoco, de Jan Brueghel, por exemplo) não deixei de ficar durante um par de minutos em frente à pequena tela de Induno. É uma situação simples, sem grande carga alegórica, mas qualquer coisa me fez parar. Lembrei-me, meio a despropósito, de um conto de Tchékhov em que um velho se tenta livrar de um cão e de um cavalo por (como ele, no fundo), estarem velhos e só lhe darem despesa. Mas o conto de Tchékhov tem um final triste e nada neste quadro indica que o homem planeia desfazer-se do cão. Parece haver cumplicidade entre ambos: o homem olha o cão com ar de bonomia enquanto este come, decidido mas sem urgência. É como se o velho tivesse acabado de chegar a casa (a forma como está vestido sugere-o) e tivesse ido imediatamente alimentar o cão. Como se vê-lo comer fosse a coisa que mais prazer lhe dá. Claro que não lhe deve ser fácil alimentá-lo – o velho tem aparência de pobre e o cão, um são bernardo, é enorme, deve comer bastante. Ao escolher um cão tão grande e ao pintar cão e velho nesta pose e não noutra, Induno só podia estar a tentar dizer-nos algo sobre as dificuldades e a força da relação entre ambos.
Lembro-me do quadro e deste confuso processo mental na Suíça, a 3089 metros de altitude, porque na pequena estação onde o comboio de cremalheira larga os turistas há um fotógrafo que tenta convencer as pessoas a posarem junto a um par de são bernardos. Os cães, com o barrilzinho típico (como o do quadro, afinal) são belíssimos e têm um ar pachorrento. Apetece fazer-lhes festas. Mas de repente um desata a correr e abocanha uma mochila pousada no chão. Sacode-a energicamente de um lado para o outro. Um rapaz – o dono da mochila – solta um grito, corre para o cão, agarra-lhe a trela e puxa. O são bernardo pára de sacudir a mochila, roda a cabeça, olha para o rapaz e sorri (eu sei, eu sei, mas «sorrir» é de longe o termo que melhor descreve a expressão do animal). Sorri como se comprovasse mais uma vez como os humanos são tontos. Depois volta a dedicar a atenção à mochila, tentando enfiar o focinho lá dentro, enquanto o rapaz puxa com mais força. É apenas quando o fotógrafo acorre que o são bernardo percebe não ir conseguir chegar à sanduíche ou ao que quer que seja de apetitoso que o rapaz transporta dentro da mochila (relembre-se que uma das características da raça é um olfacto apuradíssimo, que lhes permitia cheirar pessoas enterradas na neve) e desiste. Sim, penso então, lembrando-me do quadro da Pinoteca, por bem alimentado que pareça estar, um são bernardo tem de ser um cão de muito alimento. Mas é também um cão de boa índole. Perdida a sanduíche, aquele reassume sem protestos o seu papel de apoio à criação de recordações turísticas.
Horas depois, regressando a Itália, conduzo em direcção ao Col du Grand-Saint-Bernard e pondero seguir pela histórica passagem, subir ao local do mosteiro onde os monges criaram a raça há cerca de trezentos anos. Mas é tarde, ameaça escurecer. Opto pelo túnel de quase seis quilómetros inaugurado em 1964. Enquanto o percorro, e por muito ilógico que seja, não consigo evitar a sensação de que, ao evitar o esforço, estou de alguma forma a trair os simpáticos mastodontes helvéticos. A ser um bocadinho o velho do Tchékhov.