Diário irregular
7 de Junho
Perceber o que aconteceu no dia 5 de Junho não tem qualquer dificuldade. Digerir só o terá para quem se esqueceu do que aconteceu nas legislativas de 2009 e nas últimas autárquicas.
Durante meses foi a gritaria. Berrava-se em S. Bento, na rua e nas televisões, gesticulava-se muito, atropelava-se o discurso do vizinho na primeira oportunidade. Houve bandeiras, confusão, insultos, dichotes, acusações, baixeza discursiva, ânimos exaltados e até detenções. De repente, tirando uma ou outra greve que já se anuncia no horizonte estival, ficou tudo calmo. Até um veto do Presidente da República destinado a pôr termo a mais uma "borrada" dos senhores deputados passou quase despercebido. Quem inventou esta coisa da democracia deve ter pensado que as eleições são fundamentais para aliviar as tensões. Escolher é também uma forma de amenizar os conflitos. No nosso íntimo também é assim que as coisas se passam. À dificuldade da escolha sucede-se a opção irreversível. Depois de assinalada a cruz e entrado o voto na urna está o assunto arrumado. O dia seguinte é como que um regresso à realidade. Acabou-se, está arrumado. Agora é voltar ao trabalho e enfrentar os combates de todos os dias até que dentro de quatro anos, se entretanto a tensão não subir demasiado e não for necessário antecipar eleições para que ela possa ser descarregada, voltaremos à confusão. Até nisto, como forma de aliviar as tensões e de nos trazer de novo até nós, a democracia é um sistema quase perfeito.
Ainda não há Governo. E vai demorar algum tempo, o que, porém, não é impeditivo de já ter sido anunciada a primeira medida pelo futuro primeiro-ministro. Num país que tem sido superavitário de comissões, paradoxalmente, a primeira medida anunciada é a criação de uma comissão – “autoridade orçamental independente” – com personalidades nacionais e estrangeiras. Para nos fiscalizar. Continuamos a ser originais. E desconfiados. A nossa sombra também precisa de ser fiscalizada. Nem a ela se permite cumprir a sua função e poder estar em sossego.
Uma das coisas boas do pós-eleições, para todos aqueles que se interessam e gostam da coisa pública, é a esperança que faz renascer no íntimo de cada um. Esperança em que o futuro primeiro-ministro, mesmo que não seja da mesma cor do esperançoso, consiga fazer alguma coisa pelo País, por nós, pelos que nos rodeiam. Esperança, entre os derrotados, que o futuro volte a ser mais risonho nos anos vindouros. Esperança, entre os vencedores, que os eleitores no final da legislatura lhes renovem a confiança e, se possível, a reforcem. O dia das eleições é assim uma espécie de 31 de Dezembro. O dia seguinte é o 1 de Janeiro. Uns ressacam, outros recompõem-se. Todos regressam a si prontos para construírem novos sonhos, novas ilusões, até que novo acto eleitoral se perfile no horizonte.
Pego nos jornais e registo dois bons textos e ambos à esquerda (a direita ainda não teve tempo para começar a reflectir tão preocupada que está com a formação do Governo S.A. e a distribuição dos dividendos eleitorais). Um de Rui Tavares, no Público de ontem. O outro de Alfredo Barroso no i. Quanto ao primeiro, a lição de que se a esquerda considerar que fez tudo bem não estará a ser séria. Em relação ao segundo a constatação, também há muito e há anos por mim referida, de que o aparelho partidário do PS está hoje ocupado por jovens burocratas, tecnocratas e oportunistas, sem convicções (também ignorantes) e dispostos a servirem quem não ponha em causa os seus poderes, circunstância que constituirá o maior empecilho à renovação ideológica e política do PS. O artigo saiu hoje e os primeiros exemplos apressaram-se a chegar: António José Seguro ainda não se apresentou como candidato a coisa alguma e “secções socialistas em todo o país estão já a promover manifestos de apoio”. Esta gente não descansa. Nem aprende nada. Ainda a certidão de óbito não foi assinada e já se movimentam. Os mesmos que garantiram mais de 90% a Sócrates no último congresso e que são responsáveis pela agonia em que tudo acabou. É evidente que há urgência na escolha de um novo líder, mas quem tão mal tem feito ao partido e ao País, se tivesse um mínimo de humildade e decência deveria ficar quieto e esperar que os vocacionados para a liderança avançassem, livremente, depois de ponderarem se tinham condições para fazer melhor do que o que saiu, sem jogos de bastidores idiotas e interesseiros nem condicionamentos espúrios. Quem quer que seja que venha a liderar o PS terá de democratizar as regras se quiser efectivamente liderar ("un chef, c'est quelq'un qui a besoin des autres, l'un ne va pas sans l'autre", dizia o filósofo e escritor Paul Valery), mexer nos Estatutos, separar o trigo do joio acumulado. José Sócrates foi um líder elevado a essa condição em circunstâncias excepcionais, imposto pelo momento que se desenhou pelo núcleo duro do seu antecessor. O resultado dessa “imposição” foi julgado em 2009 e agora em 5 de Junho pp. Seria muito mau que as coisas se voltassem a processar da mesma forma, precipitadas e atabalhoadas, com a escolha de um novo líder. Quem quiser que tire conclusões.
As análises aos resultados estão praticamente todas feitas. Contudo, não posso deixar de pensar no que aconteceu no Algarve. A nível nacional, o PSD venceu em 246 dos 308 concelhos. Este número diz muito da forma como foi avaliado o trabalho de quem saiu. Mas em Faro, um distrito tradicionalmente à esquerda, o PS perdeu em todos os círculos eleitorais. Miguel Freitas, pela sua capacidade de trabalho, dedicação e esforço, não merecia este resultado. Só que se ele, por um lado, espelha o descontentamento por uma política em relação à região que foi traçada em Lisboa e que teve reflexos no dia-a-dia dos seus cidadãos e, por outro, é sinal da irrelevância para os eleitores locais do cabeça-de-lista escolhido pelo Largo do Rato, importa não esquecer que tal resultado também castiga a forma como o PS/Algarve se deixou enredar – falar em subalternização seria excessivo – na teia de apoio ao líder nacional, sem ver que por detrás do unanimismo se estava a hipotecar um futuro que a todos diz respeito. É, por isso mesmo, curioso ouvir o que alguns, que andaram sempre ao “colo” com José Sócrates e a sua entourage e foram dizendo ámen a tudo, mostrando-se míopes para verem o que se estava a desenhar, vêm agora dizer. Depois do descalabro é fácil anunciar que de futuro “tem que haver mais proximidade às pessoas, capacidade de olhar olhos nos olhos o eleitorado”. Se tivessem ouvido o que eu disse no último Congresso do PS/Algarve escusavam agora de ter de estar a lamentar-se.
Um campanha sem cartazes e com pouco lixo é uma benção. E a prova de que os eleitores não dependem do aparato para escolher. Seria bom que de futuro fossem todas assim. Poupavam os partidos, poupava o erário e ganhava o ambiente.