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Delito de Opinião

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 15.05.11

15 de Maio de 2011

 

Encostado então à janela, como se fosse um padre, fez sobre todos aqueles pontos humanos que marchavam o sinal da cruz e nesse momento pensou, lembrando um pai a falar dos filhos: Deus vos proteja, que logo corrigiu para um: Deus nos proteja!, que o incluía não na mesquinhez individual dos de lá de baixo mas na fraqueza, apesar de tudo, da espécie. Nesse momento a consciência de que iria morrer da mesma maneira que todos aqueles que via da janela tornou-se insuportável; alguém cometera um erro espantoso, que marcara de irracionalidade toda a sua vida.” – Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica

 

Tenho com a televisão uma relação de respeito e de desconfiança. Sempre tive. A televisão foi para o país atrasado do salazarismo uma conquista quase tão importante como fora o papel de Gutenberg para difusão do livro e dos jornais. A televisão serviu para prolongar o prazo de validade do regime deposto em 25 de Abril de 1974, contribuindo para um aumento da propaganda, mas ao mesmo tempo ajudou à consciencialização de uma parte importante da sociedade, quer nos meios urbanos quer nos rurais, para a existência de um outros país, de um outro mundo e de novas dimensões do saber e do conhecimento. As conversas em família de Marcelo Caetano ou as reportagens propagandísticas da guerra colonial foram, entre outros, o preço que foi preciso pagar pela possibilidade de se ter o Fialho e o Solnado, de se ver imagens do Maio de 68, de Martin Luther King ou da chegada do homem à Lua. A televisão, mesmo a preto e branco, era factor de união, também para a discussão, em casa e no café, numa altura em que o mundo do cabo, da Internet, dos telemóveis e dos “ipad” e “ipod” ainda não tinha tomado conta das nossas vidas. A televisão contribuía para a formação de consciências. E depois da revolução foi um instrumento essencial para a institucionalização do regime, para a sua consolidação, para o aprofundamento da democracia e alcance de uma maior e melhor consciência de nós próprios. Fosse como factor de aproximação da diáspora ou janela de um mundo desconhecido, a televisão desempenhou um papel social e culturalmente útil, sem deixar de ser uma poderosa arma de entretenimento. Dos concursos com cariz cultural, onde se fazia apelo à cultura geral e à capacidade de improvisação, que agarravam famílias inteiras ao ecrã, até aos jogos de futebol, em doses moderadas, e às corridas de automóveis, havia de tudo um pouco. Depois vieram outros tempos, chegaram os canais do Dr. Balsemão e da Igreja, que acabaram a concorrer na banda dos filmes eróticos e semi-pornográficos, até aparecer o cabo, os canais (e canis) pagos. Enfim, até ao que temos hoje.

 

Não sou, nem quero ser, já que essa não é a minha vocação nem tenho a sua bagagem, um Mário Castrim ou um Cintra Torres. Porém, penso que há coisas que são de tal modo evidentes que ao cidadão comum não lhe poderá jamais ser atribuído o pecado da presunção.

 

Eu tive um dia calmo, junto ao mar. Nadando, lendo e gozando os primeiros calores da Primavera, antecipando a chegada, sempre ansiada, do Verão. Por maior que seja a crise não há quem não goste da luz de Maio. Eu gosto. E desejo a chegada das noites quentes de Junho e de Julho por onde entra a brisa que prolonga os meus dias e os meus livros, atrasando a chegada da aurora. A última coisa em que eu hoje pensaria seria em televisão. Mas bastou um par de minutos para alterar a minha rotina, dar cabo do meu ripanço e quebrar a quietude da jornada.

 

Tanto quanto já percebi, seja para fazer a vontade a Francisco Pinto Balsemão, aos senhores da TVI ou a outros, umas das decisões que aí vem tem a ver com a privatização da RTP. Pelo que ouvi esse até já será um dado adquirido para um membro do Governo que está de saída. Não tenho nada contra. A concorrência, a existência de regras transparentes, o equilíbrio entre a oferta e a procura são necessários à existência de uma televisão que esteja ao serviço da comunidade.

 

Só que depois de esta noite ter ouvido o Prof. Marcelo, apercebi-me da forma como a perversão das regras de concorrência, a obscenidade, pode levar à destruição de qualquer discussão séria sobre televisão. De um momento para o outro dei comigo a fazer zapping entre a RTP1, a SIC e a TVI, para ver se percebia qual dos programas que estava no ar conseguiria formar o número mais elevado de mentecaptos. Qual deles contribuiria mais rapidamente para o aumento do número de criaturas com um Q.I. próximo da idiotia.

 

Com efeito, enquanto na RTP andava o cantor Roberto Leal aos saltos e a recitar salmos, ao mesmo tempo que uma sujeita tomava banho de biquíni numa espécie de balneário comum onde outros lavavam os dentes, e um infeliz qualquer ia para o duche de garrafa de vinho e fato de banho de mulher, grasnando inanidades ininteligíveis pelo meio, e na SIC uns desafortunados da vida, a quem uma desgraçada obesidade se encarregou de transformar em vedetas de televisão, a TVI, para a qual alguém admirado com a minha ignorância televisiva me alertara, mostrava uns fulanos e umas fulanas, ditos “famosos”, enfiados no meio de tribos da Namíbia, da Etiópia e de Vanuatu, a aprenderem a defecar e a limparem-se com uma pedra e com restos de cocos, a beberem leite de vaca acabada de ordenhar em condições higiénicas deploráveis e a discutirem se um dos “artistas” era homem, mulher ou um extraterrestre com pila e unhas pintadas.

 

Se o objectivo da privatização da RTP é uma decisão consensual entre os partidos do arco do poder, como forma de diminuir o nosso crónico défice público e de dar resposta à vontade dos nossos credores, então também gostava de poder perguntar aos candidatos desses partidos, em especial àqueles que aspiram desempenhar funções de primeiro-ministro, o que pensam sobre os programas que os três principais canais de televisão passam ao domingo à noite. Saber em que medida, no entender daqueles, a existência de tais “programas” contribui para o entretenimento, a formação ou o divertimento dos portugueses. Bem sei que o nome de uma instituição como a Cruz Vermelha, outrora inspiradora dos mais nobres sentimentos, aparece misturado com aquela bosta dos “Perdidos na Tribo”, mas pergunto se isso justifica a existência do programa? Que raio de critérios, que estranhos desígnios, justificam a existência de programas como aqueles que esses três canais passam ao domingo à noite?

 

Se eu mandasse, e não seria por preconceito, que não tenho nem nunca tive, mas por razões de sanidade, nenhum deles estaria no ar num canal generalista. Presumo que nenhum dos líderes dos principais partidos se predisponha a responder às questões colocadas ou que isso possa ser para as suas cabecinhas motivo de preocupação, posto que até agora também não lhes ouvi a mais pequena palavra sobre isso. Mais, duvido que algum dos partidos, dos que têm um programa de Governo ou algo que a tal se possa assemelhar recheado de vacuidades, se preocupe com estes aspectos, aparentemente laterais, da nossa vida pública. Seria, contudo, fundamental que alguém com um mínimo de bom senso e de autoridade, coisa que Passos Coelho, Sócrates ou qualquer um dos outros objectivamente terá dificuldade em demonstrar possuir, pudesse perder dois minutos para dizer aos (ir)responsáveis por tão pungentes programas que nada daquilo presta; que não há fim, dinheiro ou acção caritativa que justifique tanto excremento televisivo no ar e nos horários mais nobres. E se a privatização da RTP for para continuarmos a ter tanta ou ainda mais moscas nos ecrãs generalistas, então o melhor mesmo é fecharem de vez a empresa e abrirem hospitais. Psiquiátricos, de preferência. Depois poderão entregar a sua gestão a Júlia Pinheiro, ao tal Goucha dos saltinhos ou a Paulo Futre - em dois dias sucessivos convidado de Herman José e de um programa desportivo na RTPN. Ou até ao Dr. Fernando Nobre. Quem me garante que não residirá aí a chave para os problemas da nossa economia, para as sentenças incompreensíveis, para os atrasos na justiça, a falência do estado social ou o colapso do regime?

 

Este País está a precisar de um levantamento. Ou de um golpe de estado.

 

Esta classe política e empresarial, tão bem representada pelo Presidente da República ou pelos tipos das seitas que aspiram mandar a partir de 5 de Junho, merecia levar um pontapé bem assente nos fundilhos e ser condenada a ver os “Perdidos na Tribo”, e as respectivas aproximações, nas Selvagens, com uma bandeira e o hino nacional sempre a tocar em potentes altifalantes, até que se finassem. E seria pouco. Em última instância, são esses tipos os responsáveis pelo estado a que a televisão chegou. Porque em Portugal a televisão é o País. E o País é a televisão. Eles não sabem, nem querem saber. Por isso seria bom, muito bom mesmo, que alguém lhes dissesse.

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