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Delito de Opinião

Convidado: PEDRO ADÃO E SILVA

Pedro Correia, 05.05.11

 

A pobreza da opinião

 

Sou um consumidor compulsivo de informação e, como sempre me acontece quando passo grandes temporadas fora de Portugal, não demora muito tempo até passar a seguir dois ciclos noticiosos com a mesma atenção. Mas, tendo vivido em Inglaterra e em Itália, nunca como agora que estou nos EUA senti tanta diferença entre o que leio cá e o que leio de Portugal. Como é natural, as diferenças são evidentes nos artigos sobre política internacional ou até no menor número de notícias tratadas nos noticiários televisivos (mas, também, cada uma delas mais aprofundadas). Mas onde encontro maiores diferenças é na opinião.

A análise pode ser enviesada porque, no essencial, leio dois jornais todos os dias, o Washington Post e o New York Times e, com menor atenção, vou lendo coisas através do realclearpolitics e do realclearworld. Acontece que não passa um dia sem que aprenda alguma coisa com a opinião que leio aqui; já com a que leio em Portugal, fico apenas a saber a opinião (aliás, previsível) do autor. Contra mim falo, pois sou beneficiário activo do sistema protegido que impera entre nós. Em Portugal, as colunas de opinião ou assentam na ideia estrambólica de que quem escreve opinião tem de ter rasgo literário (o que explica a sobrevivência de colunistas onde o brilhantismo estilístico serve para esconder a preguiça intelectual) ou limitam-se a um conjunto de afirmações que dispensam sustentação ou, pior ainda, dependem de um par de trocadilhos combinados com uma ou duas frases de belo efeito, preferivelmente no registo engraçadinho que tem feito escola. Quando a opinião deveria partir da defesa de um argumento com base em factos, ideias ou conhecimento disponível (por exemplo académico), o que nos é oferecido em Portugal é, frequentemente, um exercício preguiçoso baseado na fulanização, em processos de intenção e na desvalorização da capacidade de raciocínio.

 

 

Da esquerda à direita, nos EUA é possível ler todos os dias artigos que preenchem todos estes requisitos. Por exemplo, David Brooks, mais à direita, no NY Times, faz um trabalho notável de sistematização de conhecimento científico nas ciências sociais, mostrando a sua relevância para o debate da actualidade (não seria possível alguém fazer o mesmo em Portugal?). Nicholas D. Kristof ou Thomas Friedman, ambos no NY Times, que normalmente estão literalmente no epicentro geográfico dos acontecimentos, mostram as vantagens de opinar sobre o que se conhece de facto (bem sei, uma impossibilidade nos media portugueses, onde os recursos são escassos e todos os dias cresce a importância do jornalismo de secretária, baseado em dois ou três telefonemas para politólogos, feitos por jornalistas com salários abaixo dos mil euros). Anne Applebaum, David Ignatius ou Dana Milibank no Washington Post têm sempre ângulos analíticos informados, que depois tendem a desenvolver em livros de maior fôlego. Já para não falar da New York Review of Books que, no seu cosmopolitismo, sofisticação intelectual e argumentativa, é, como com justiça escreveu Tony Judt, um dos três principais activos norte-americanos (os outros são o Thomas Jefferson e o Chuck Berry). Estes são apenas alguns exemplos, mas há naturalmente muito mais. Pode parecer uma constatação algo ingénua, mas para quem se alimenta da curiosidade intelectual há uma diferença entre aprender com a opinião, principalmente com aquela de que se discorda, como me acontece aqui nos EUA, e todos os dias, quando leio na net os jornais portugueses, ficar entristecido com a pobreza intelectual do debate no espaço público em Portugal. 

Há, é evidente, boas explicações para as diferenças. A primeira é cultural: pura e simplesmente o espaço público em Portugal não beneficiou da influência anglo-saxónica e da cultura analítica que lhe está associada. Há também um problema de escala (somos demasiado pequenos) que se traduz em limitações materiais: não há recursos para investir na profissionalização do jornalismo, quanto mais da opinião. Contudo, não estamos perante desculpas suficientes.

Hoje, por exemplo, fico com a impressão que se um alienígena visitasse Portugal não deixaria de ficar surpreendido com a centralidade que Sócrates ocupa na opinião. E, quando digo centralidade de Sócrates, não falo das suas políticas, dos seus erros ou falhanços, mas dele próprio. É, por exemplo, uma tarefa hercúlea encontrar uma análise baseada em critérios racionais sobre a política portuguesa que inclua o primeiro-ministro. O que nos é oferecido é fulanização da opinião, apenas mais um sintoma da pobreza do debate. Dir-me-ão: Sócrates é responsável por o clima actual, no qual ele se tornou o centro de tudo. Peço desculpa, mas atribuir as responsabilidades deste contexto a Sócrates talvez seja conceder-lhe uma importância que um primeiro-ministro não pode ter, ao mesmo tempo que se desvaloriza dinâmicas bem mais estruturais que a alegada centralidade de Sócrates procurar esconder. Na verdade, há dias em que temo pelo futuro profissional daqueles que hoje vivem obcecados com Sócrates, mas, pensando bem, têm o futuro assegurado. Quando Sócrates deixar de estar no centro do mundo político português, passarão a dedicar igual atenção a outro protagonista. Quanto a quem é leitor, pode ficar com uma certeza, a pobreza do debate reproduzir-se-á.

 

Pedro Adão e Silva

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