Diário irregular
19 de Abril de 2011
A forma como os acontecimentos se precipitam, melhor seria dizer atropelam, a caminho do cinco de Junho e das eleições, deixa uma margem tão estreita para a interpretação dos factos que me sinto roçar por um abominável tédio. A torrente informativa também não ajuda, e até a publicidade cansa. São intervalos para emissão de anúncios que duram tempos infinitos, cortando serviços informativos que insistem em prolongar-se horas a fio. São as reportagens repetidas ad nauseam às mais variadas horas e durante dias seguidos. É o estilo espampanante e gongórico da apresentação das notícias a que raros escapam. O novo pretexto é a presença dos técnicos das instituições financeiras internacionais que nos vêem perguntar pelos bens penhoráveis. O espectáculo que alguns dão à porta do Ministério das Finanças de microfone em riste é tudo menos normal. O défice hoje não é de informação. Boa, sofrível, medíocre, há para todos os gostos e estilos. Do apalermado ao enfatuado. E a oferta de tão generosa acaba por contribuir para afastar as pessoas da informação que interessa. Mais do que em qualquer outra actividade, é na informação que temos que mais se vê o défice de formação.
Num texto recente, Alberoni sublinhou que a deterioração dos valores humanos, o desprezo pelos valores tradicionais, trouxe consigo uma desvalorização do peso da palavra. Ele pensa em Itália. Pensemos em Portugal.
O modo como temos assistido à erosão da esperança traz em si, para pegar nessa ideia do sociólogo italiano, o desvirtuamento da palavra. E se bem virmos as coisas, a palavra é o início e o fim de tudo. É por ela, mesmo balbuciada, que uma criança se afirma junto dos seus progenitores. É por ela que se fazem revoluções, escrevem livros e semeiam discursos. É a palavra, escrita ou falada, que faz a diferença. Em casa, na escola, no trabalho, no lazer. E até na hora da morte é a palavra do moribundo que será recordada depois da sua partida. A sua força reside em atravessar todo o ciclo da vida. Porém, só é recordada a palavra que marca, a que enobrece, que nos valoriza e contribui para a nossa afirmação no mundo. Individual e colectiva. O mau uso que da palavra tem sido feito por parte dos nossos dirigentes deveria ter funcionado como um alerta para todos nós há mais de uma década. Hoje só nos resta voltar a formar, a reeducar o uso da palavra desde o berço e a dar-lhe uma dimensão que nos permita voltar a sonhar.
Registo com satisfação a iniciativa do Presidente da República de reunir os seus antecessores no 25 de Abril. Por uma vez o homem acertou. Espero que esse encontro tenha continuidade. Num ou noutro momento da nossa história recente cada um de nós se reviu num gesto ou numa palavra desses homens. Muitas vezes criticámos, amuámos ou nos revoltámos com o que disseram ou fizeram. No meu caso foi mais com o que não disseram, com o que não fizeram e com os exemplos que não deram e deviam ter dado. Por teimosia, algumas vezes, por incapacidade para ver na distância e egoísmo noutras ocasiões. Em especial por medo. José Gil já o tinha escrito. O medo tolheu-nos o futuro. E foram homens como eles, os que mais responsabilidades têm na actual situação, que pelo seus próprios medos e receios contribuíram para a desvalorização da palavra, para o aparecimento de homens – políticos, evidentemente – como Louçã, Sócrates ou Passos Coelho, para só falar nos mais próximos e que conseguiram como poucos desvalorizar a palavra, erradicar o sentido do discurso.
Freitas do Amaral parece querer recuperar a dimensão pedagógica do discurso. Ele que conhece tão bem o peso de uma palavra pronunciada com boa dicção no momento apropriado. Por isso, aquilo que ontem disse de Teixeira dos Santos e José Sócrates podê-lo-ia ter dito mais cedo. Antes de estarmos assim. O peso da sua palavra foi perdendo fulgor fora dos manuais universitários. E de quem tem o seu currículo e responsabilidades não se esperava que chegasse tarde. Ou que precisasse, neste momento, de dizer que não vai votar em José Sócrates, assim como quem quer afirmar distância em relação ao proscrito. Na semana que atravessamos esse é um gesto muito pouco cristão.
Face à total irrelevância dos prosélitos que estão a ser incluídos nas listas de candidatos a deputados, discute-se o nome dos que perderam o TGV de 5 de Junho, dos que desaparecerão das fotografias, dos que aguardarão na sombra de uma dessas empresas que progride à custa da ineficiência do Estado ou do dinheiro dos contribuintes o regresso à ribalta.
Respigo, aqui e ali, uma ou outra tirada para mais tarde recordar. As ligadas a Fernando Nobre são as que marcam a estação. Aquela de comparar o que Nobre disse ao Expresso, na sua incontinência verbal, com o que Mário Soares fez durante todo um mandato no Parlamento Europeu é mais uma para o rol. Se não tivesse sido dito pelo Carlos Carreiras, pessoa que estimo, dir-se-ia que tivera origem num homem da bola. Ou com passado pela bola.
As figuras de estilo ligadas a esse mundo mágico de Madaíl, de Fernando Seara e das acompanhantes de Pinto da Costa estão a tomar conta do discurso político. À falta de um programa de Governo, de uma ideia para governar Portugal, ou até da mera formulação de sugestões para os senhores que nos visitam, o líder do PSD já pede “que o deixem governar”.
Uma estrela que o infortúnio condenou a um apagão precoce do firmamento da Luz pedia que o deixassem jogar à bola. Não me informei sobre as preferências clubistas de Passos Coelho. Mas acredito que a sua frase revela o Mantorras que há nele. Não sei se Deus, que quando toca a Portugal tem andado distraído, ainda fará do Sr. Relvas ministro de Portugal. Tudo é possível. Ou se preferirá mantê-lo como o Luís Filipe Vieira (sem bigode) do PSD. Em todo o caso, independentemente do que venha a acontecer, ou me engano muito ou ainda iremos ver o líder do PSD com uma carapinha. E vai ser antes de 5 de Junho.
Governar é uma espécie de futebol. E aquele golo marcado por Passos Coelho na lista de Lisboa, com uma assistência de Fernando Nobre, definiu um estilo. Hoje sabemos o que eles são capazes de fazer por um golo. É verdade que ainda os marcam com os pés. Mas se deixarem governar o novo Mantorras, ele ainda terá mais quatro anos para tentar marcá-los com a cabeça. E se a partir, mesmo que nos deixe a todos escaqueirados, chama-se a AMI.