Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

A inveja

Marta Caires, 11.03.09

Há uns anos, quando a crise ainda não tinha tomado conta dos espíritos, José Gil escreveu um livro sobre o medo de existir, esse terror português que pede desculpas por respirar, por ter ideias, por andar e viver. O filósofo avançava razões para este atavismo histórico, recuava à ditadura, ao que a revolução não fez e, por último, à essência da sociedade. E, lá, por detrás dos debates, foruns e antenas abertas nas televisões, na Internet e nas rádios, o investigador detectava a raiz do mal na inveja que despreza o mérito, deprecia a criatividade e condena ao silêncio tudo o que possa florescer e ter sucesso.

A inveja, ainda que feia, é humana, até os santos a sentem. Inveja por alguém mais bonito, pela abundância, pela alegria, mas aquilo que mina as relações sociais não é este imponderável, essa fraqueza de querer a felicidade dos outros. O impulso é como a espuma na areia, desfaz-se e não deixa rasto. A inveja - a que se instituiu entre os portugueses - é patológica, obssessiva. Corre sinuosa nas apreciações negativas, na troça de pequenos nadas. O rapaz do 2º esquerdo é entrevistado na televisão, diz coisas inteligentes e, quando sai à rua na manhã seguinte, depara-se com o risinho irónico a bailar na cara do vizinho da frente.

Não sabe, mas pressente que, no café, na bica antes de ir trabalhar, a inveja fez a festa. O parvalhão armado em doutor, arrogante, um barriga de vento. O rapaz do 2º esquerdo, que é sério, que pediu polícia no bairro e um baloiço novo para o parque infantil, deixou de ser quem sempre foi, o amigo, o bom vizinho que emprestou cinco euros à velhinha do 5º direito e defendeu o estroina do último andar na reunião de condomínio. Segue a rotina de todos os dias sem saber ainda que, no bairro, subiu ao Olimpo do despeito. Por lá, na mesma galeria de indesejados, está a jeitosa do 3º andar.

O cabelo castanho claro, as pernas altas, a roupa a condizer e o Mazda desportivo no estacionamento. Foi por essa porta que a inveja passou a galope. As mulheres porque era bonita; os homens porque o Mazda os esmagou, o bairro inteiro porque era a jeitosa e tinha dinheiro. Em pouco tempo, passou de bonita a antipática, ninguém deu que era apenas tímida, a hostilidade no elevador não ajudou. Quando deixou de dar os bons dias, corria veloz - como só a má-língua consegue ser - a história que subira na empresa onde trabalhava com favores sexuais. As 12 horas no escritório, a solidão dos domingos, o esforço, aquelas olheiras que enegreciam o rosto ainda jovem? A inveja só vê a mulher bonita ao volante do Mazda verde.

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.