Convidado: RICARDO GROSS
O inferno feminino
Os melhores filmes são os que expõem as nossas obsessões. Quando nascemos sentimo-nos especiais, fazem-nos sentir especiais, fenómeno que apenas se repete aquando do primeiro Amor (maiúscula intencional) correspondido. A custo aprendemos que o que é constante na vida é também comum à generalidade dos homens. Na idade adulta supõe-se que encontremos conforto na repetição, deixando a inquietação dos sonhos para o sono e para os filmes. É aqui que entram duas formulações que jamais esquecerei. Uma popularizada por Godard, “o cinema substitui ao olhar um mundo que corresponde aos nossos desejos”; a segunda atribuída a Camus (de novo cito de cor), “o trabalho do artista é a procura daquelas duas ou três imagens perante as quais o coração se abriu pela primeira vez”. O cinema tem total implicação nisto. Ser espectador e cinéfilo é à sua maneira um trabalho de artista. Uma busca incessante. As imagens e os temas que deixam marca ecoam a nossa história privada. É assim com toda a gente, e tantas vezes por razões semelhantes.
Isso dá-me a capacidade de especular sobre um filme como Road to Nowhere/Sem Destino, actualmente nas salas, não o tendo visto ainda. Basta conhecer a sinopse e algumas imagens. A situação obsessiva de alguém, um homem, que encontra numa mulher a possibilidade de substituir outra. Todos os sinais aparentes apelam à matéria invisível da memória e do sentimento. Mas temo, não, estou perfeitamente seguro, que seja demanda infrutífera, como aliás o próprio título deste filme de Monte Hellman sugere. Uma estrada sem fim (Road to Nowhere) que não leva a parte alguma. O trabalho artístico como criação de simulacros – as tais duas ou três imagens de que falava Camus –, pois o coração não voltará a sentir como da primeira vez em que de facto se abriu. Isto sabemos, se bem que algumas vezes o possamos esquecer, tão só porque ninguém suporta períodos ininterruptos de lucidez. E quando o coração se abre somos nós que ficamos para sempre prisioneiros dentro dele: como num segundo nascimento a que corresponderá a primeira morte, sendo ambas condições definitivas. Para sempre insatisfeitos, uma vez inaugurada a ferida narcísica.
Cabe aos melhores filmes iludirem-nos com a possibilidade da libertação. Substituição ilusória e efémera. As mulheres e o cinema; o cinema e as mulheres. Mero fogacho da plenitude que não se recupera nunca mais. Duas irrealidades que o obsessivo está condenado a conjugar até ao fim. Que não termina quando os filmes acabam ou os pequenos romances recomeçam. “Vertigo”. Termino o texto e vou para o cinema arder.