Desonestidade intelectual
A desqualificação de quem pensa de maneira diferente é a melhor forma de matar à nascença qualquer debate de ideias. Isso mesmo foi feito por António Vilarigues, que me acusa de “desonestidade intelectual” a propósito do apoio que o PCP tem dado a Muammar Kadhafi na guerra civil em curso na Líbia. Porque – diz ele – não aponto exemplos do que refiro nestes dois textos.
Não aponto exemplos? Um leitor isento concluirá naturalmente que qualquer desses textos tinha citações suficientes para sustentar o que escrevi. Mas posso sempre voltar ao tema. E, embora o faça sem qualquer gosto, não cedo à tentação fácil de brindar quem me critica com o apodo de “desonestidade intelectual”.
Tenho neste momento à minha frente o Avante! de 10 de Março. Na página 3, sob o título “É tempo de impedir a guerra”, o jornal dedica um texto à Líbia, ignorando logo no título que já então se desenrolava uma guerra no país. “Guerra” – para o Avante!, tal como para Kadhafi – só sucederia no dia em que ali ocorresse uma intervenção estrangeira. Mas naquela altura, até devido à presença de numerosos correspondentes de guerra na Líbia, o mundo não podia ignorar que se registava um duro conflito totalmente desproporcionado: de um lado os resistentes mal equipados e sem recurso à aviação; do outro, a ditadura líbia, armada até aos dentes. Nada que comovesse o Avante!: o jornal oficial dos comunistas devalorizava por completo o massacre de civis às ordens do coronel líbio, qualificando-o como "desinformação imperialista". Isto numa fase em que – acreditava o Avante!, nesta prosa assinada por Ângelo Alves, membro da Comissão Política do PCP – “a postura da China e da Rússia no Conselho de Segurança das Nações Unidas” seria “contrária a uma agressão à Líbia”. Kadhafi pensava o mesmo, mas ele e os amigos de Lisboa enganaram-se: Moscovo e Pequim recusaram vetar a Resolução 1973 do Conselho de Segurança, viabilizando assim a missão da ONU destinada a proteger o povo líbio.
Na página 21 da mesma edição, e sob o título “Comissário demarca-se de posição sobre a Líbia”, o jornal vinha de novo em socorro do ditador congratulando-se por haver um comissário europeu – o maltês John Dallli – a “demarcar-se da posição oficial da União Europeia sobre a Líbia, recusando-se a exigir a demissão de Muammar Kadhafi”.
Mas a cereja em cima do bolo chega na página 23, numa peça de página inteira – não assinada – sob o título “Líbia cercada pelo imperialismo”. Uma peça que começa assim: “No domingo, milhares de apoiantes do Governo liderado por Muammar Kadhafi saíram às ruas da capital, Trípoli, para celebrarem a reconquista de algumas posições aos rebeldes. A manifestação, que teve o seu ponto alto na praça Verde, surgiu depois da televisão estatal informar que as forças leais ao Presidente haviam reconquistado importantes cidades como Misrata, Sauiya, Bem Jawad, Rad Lanuf ou Al-Zawyia.” Esta peça, extraordinariamente, procurava lançar o descrédito sobre as acusações dirigidas ao déspota líbio, referindo-se às “supostas violações dos direitos humanos cometidas pelas tropas leais a Kadhafi durante a alegada repressão de pretensas manifestações de massas”.
Alegadas? Pretensas? Supostas? O grau de cumplicidade com um ditador “amigo” devia ter limites, ditados pela óbvia evidência dos factos. Isto não sucede no Avante! nem no PCP. Mas que outra coisa seria de esperar de um partido que apoiou o infame pacto assinado entre a Alemanha de Hitler e a URSS de Estaline, a construção do muro de Berlim e as invasões imperialistas de países soberanos como a Hungria e a Checoslováquia pelos blindados “internacionalistas” da União Soviética?
António Vilarigues, militante de longa data do PCP, devia pensar duas vezes antes de chamar intelectualmente desonesto a quem quer que seja.