Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Convidada: ANDREA CARVALHO ROSA

Ana Vidal, 21.02.11

 

Manhã

 

Com a queda, a face direita colou-se-lhe ao chão. Sentiu a frescura da tijoleira da cozinha e, sem saber porquê, soube-lhe bem. Um ligeiro formigueiro percorreu-lhe o corpo, quis mexer-se e não conseguiu. Passados os instantes de aflição, entregou-se à paz anestesiada que veio embalá-la, num aconchego que lhe lembrou o da avó paterna, lá muito longe, quando era menina. Era manhã, uma aragem fresca vertia-se pelas frinchas das janelas e tomava o espaço silencioso, teimando contra os primeiros raios do sol. Os canários ensaiavam trinados na marquise. Ao longe ouvia-se o rumor do dia a levantar, os carros a acelerar no viaduto, uma criança nas escadas. Não chegara a casar, nem tivera filhos. Saiu intempestivamente da aldeia quando o noivo lhe deu um estalo por ter entrado sozinha no café, à sua procura. Este pequeno incidente alterou-lhe a vida, foi a gota a mais que a fez largar um futuro que não queria para nada e desaguar em Lisboa, para o pé da irmã. Foi a melhor coisa que fez, disse-o pela vida fora. Em Lisboa, empregou-se numa casa de família, fez seus os filhos dos patrões, que recebia com mimos e pão-de-ló, quando chegavam do colégio. Nas manhãs soalheiras de Sábado, cantava alegremente, as cantigas que ouvia na rádio, os meninos entrando-lhe na cozinha a cheirar o almoço, a comer da massa dos rissóis que estendia, rindo-se das suas cantorias. Namorar era complicado, não lhe sobrava tempo para assuntos que tais. Os Domingos passava-os em casa da irmã, faziam croché no sofá, junto à janela, e ajudava na lida da casa, que a irmã trabalhava para fora.

Não tinha medo de morrer. Assim como assim, a vida trazia-lhe já poucas alegrias, os dias sucedendo-se iguais, da cama para a cozinha para o televisor. Juntara-se, tarde, a um senhor viúvo, partilharam a casa meia dúzia de anos, meia dúzia de anos de sossego conjugado, depois a doença levou-o, havia já tanto tempo. A partir daí custara-lhe, sobretudo, o silêncio. Sentia, ao final dos anos, a falta das tarefas que se encadeavam nas seguintes e não lhe deixavam tempo para pensar na vida. De pouco lhe serviam agora as mãos, outrora habilidosas. Quando as pernas fraquejaram deixou de sair e, com o tempo, deixara de se importar com isso, afinal, sair era uma trabalheira, para ela e para quem fosse que a levasse. Ultimamente vivia mergulhada no passado, as memórias e as novelas ocupavam-lhe os dias e os bichos faziam-lhe companhia. Não, não tinha receio da morte. Sentia a tranquilidade das coisas inevitáveis e a irmã, serena, do lado de lá.

Soube da presença do cão, lá longe, junto de si, mas já não pôde sentir-lhe a língua quente nas mãos apaziguadas. Sorriu, percebendo na boca o gosto dos quadrados de noz que os meninos tanto gostavam e que comia no dia seguinte, ao pequeno-almoço, com o café aguado da cafeteira de esmalte. Veio-lhe à memória aquela canção que cantarolava nas manhãs de sol, quando a casa se aquietava e se entregava à lida. Como é que era? Ah, sim, começava assim:

 

Andrea Carvalho Rosa

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.