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Delito de Opinião

'Artitectura': os mal-amados (20)

João Carvalho, 13.02.11

Kowloon Walled City, em Hong Kong

A Kowloon Walled City é uma zona urbana delimitada do território de Hong Kong. (Ao contrário do habitual nesta série, este número não trata de apreciar uma construção ou edifício específico, mas sim um sítio, uma área intra-muros que fica em Kowloon, do lado continental da actual Região Administrativa Especial de Hong Kong, mesmo em frente à ilha de Hong Kong propriamente dita e nas proximidades do perímetro oeste do enorme porto de mar.)

Em meados da década de 70, a área começou a transformar-se. Foram surgindo edifícios de base quadrangular, prédios-caixotes encostados uns aos outros que cresceram como formigas em açúcar e sem o mais pequeno rasgo arquitectónico, pois mais não eram do que construções apressadas para abrigar o boom populacional registado na segunda metade do século XX. Além do desprezo arquitectónico, faltava-lhes qualquer padrão mínimo de qualidade e a área ocupada, que se alastrou como lume em gasolina, também nunca obedeceu a qualquer critério de urbanismo.

Foi preciso responder às necessidades galopantes à margem do senso comum, com construtores e empreiteiros deixados à rédea solta na ânsia da especulação, enquanto o preço do centímetro quadrado atingia valores impensáveis e sempre crescentes.

A par do pandemónio que se instalava, as famílias faziam obras de remedeio para se desenrascar e ainda imperava o mau gosto dessa população nova de origem rural e totalmente impreparada para viver num meio citadino que se oferecia simultaneamente atraente para os negócios e limitado pela fronteira próxima entre o território governado pelos britânicos e a China comunista. Quer isto dizer que ganharam rapidamente relevo milhares de modificações sem intervenção de arquitectos ou engenheiros.

A pequena cidade (uma espécie de cidadela, a bem dizer) tornou-se monolítica. Rebentava pelas suas costuras, nas ruelas e caminhos labirínticos (iluminados por lâmpadas fluorescentes, porque só raramente o sol chegava ao chão) cuja existência nem as autoridades reconheciam e muito menos controlavam. Passou a ser não só a morada da imigração ilegal, mas também de toda a ilegalidade: proliferavam bordéis, casinos sombrios, quartos alugados para consumo de ópio, postigos de venda de cocaína, tascos imundos a servir carne de cão e fabriquetas "secretas" dos mais variados artigos e imitações.

No início dos anos 80, estimava-se que a população na Kowloon Walled City rondaria os 35 mil habitantes, mas em 1984 já era de 50 mil, numa área que mal chegava aos 26 mil metros quadrados, o que representava uma das mais elevadas densidades populacionais à face da Terra.

Para os construtores, havia só duas regras a cumprir: o fornecimento de electricidade (para prevenir incêndios num labirinto em que os bombeiros não conseguiam mover-se) e o limite em altura de 14 pisos, por o (antigo) aeroporto estar muito próximo. A água era distribuída a partir das oito condutas existentes (embora pudesse haver mais a partir das encostas ali perto).

Em 1987, a solução já não podia ser outra: demolir a Kowloon Walled City, arrasar toda aquela tenebrosa zona delimitada. Mas da decisão à prática ainda passaram seis anos.

Depois da demolição, de 1993 a 1994, começou a nascer um parque nesse precocemente envelhecido e degradado antro do crime. Em 1995, era inaugurado o Kowloon Walled City Park. Num território cuja extraordinária paisagem urbana é do conhecimento obrigatório dos arquitectos de todo o mundo, bem que o parque fazia falta.

Só que ficaram por lá uns resquícios "para memória futura", porque ninguém se atreveu a deitar abaixo pequenos templos e coisas assim. Com a agravante de Hong Kong pós-britânicos passar por um novo boom dos que iludem as autoridades para viver a qualquer preço do lado rico da China.

Adivinham-se mais núcleos caóticos ao modo tradicional chinês. E não só no perímetro da Kowloon Walled City mal-amada, que estas coisas (como se viu) aparecem enquanto o diabo esfrega um olho...

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