O 6.º sentido é delas. E o 7.º, também?
Emergiu de um bar engraçado quando já eram quase 3 da manhã, afinal era sexta-feira e no dia seguinte, por mero acaso, não teria de madrugar. Chegou a casa e perdeu tempo a revolver o carro, em busca do iphone que não encontrava (andava sempre a perder-lhe o rasto, de tão pesado que era, maldita a hora em que trocara o seu fiel blackberry).
Mas ultimamente era assim, não sabia onde deixava nada, tamanho o cansaço. Ou a distracção. Ou a preocupação.
Chegar a casa, que conforto... Insubstituível sensação. O quadro grande da entrada, uma loucura permitida na última feira de Madrid (e a próxima quase a chegar, o tempo voa). O candeeiro vintage, da Ladra, com aquela luz pastosa e envolvente, coalhada. A chaise longue, onde tanto gostava de ler (e às vezes de fechar os olhos e fingir que dormia, escapando ao apelo massacrante das rotinas diárias).
Por fim o quarto, o canto, o recanto da cama. E o outro recanto, o do pescoço dela. Seu. Habitual. Infalível.
Sabe-lhe bem...
Mas isso são coisas suas. Muito suas, em que não quer pensar, nem revelar.
Pega no livro. Sabe que vai sucumbir a um sono invencível e que duas páginas depois será derrotado em beleza, com as frases, a trama e o feitiço todos entranhados em si, já noutra dimensão. Amanhã acordará mentalmente a milhares de quilómetros de distância. E terá como único objecto transitivo da véspera o livro aberto, virado ao contrário, no ponto Y.
Começará de novo, como sempre, os gestos quotidianos a fingir a continuidade que só alberga na sua cabeça.
A vida tem de ser assim, tranquila. Porque traz consigo a paz, e, paradoxalmente, o espaço para poder viver a sua inquietação. Boa inquietação. Saudável, sobrevivente inquietação.
Amanhã...
Afunda-se, no desejo avassalador e telúrico de um sono profundo, de quem viveu cada minuto, cada hora de trabalho duro, cada cerveja casual de fim de noite, quem sabe se forçada.
- Em busca de quê, atrás de quê, porquê...?
- E isso interessa?
Afinal é um homem igual a tantos outros. Não busca nada, não tem de procurar sentido em tudo.
Elas, sim, gostam disso. Exigem! Demandam pela vida fora uma razão para o que quer que seja, obsessivamente.
Como se tudo neste mundo (e logo no mundo delas) fizesse sentido!- pensa, sardonicamente...
Mas essa não é uma guerra que o puxe, prefere abdicar do teste. Passa.
Está um pouco farto de todas essas tipas complicadas... Está muito farto, mesmo.
Com a luz apagada, o pé a tocar confortavelmente o dela, ainda se inquieta:
- E se aquela de hoje me perguntasse porquê? Eu saberia?
- E se eu tivesse ficado lá um pouco mais, ela perguntaria?
- E se não perguntasse, e me chamasse, iria?
Que bom, que bom é dormir e desligar de tudo.
Ficando aqui, ele sabe que não.
-Não fiquei a perder.
(Talvez só o sentido. Mas isso, por enquanto, não lhe interessa nada. Rigorosamente nada).