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Delito de Opinião

Convidada: CRISTINA TORRÃO

Pedro Correia, 04.02.11

   

 

Herança islâmica

 

Desde que me dediquei à pesquisa histórica medieval, aprendi que devemos aos mouros esta maneira portuguesa de ser, que se costuma resumir na palavra "saudade". E, no entanto, desprezamos a nossa herança islâmica. Não pretendo, nesta oportunidade que o “Delito” amavelmente me proporcionou, comentar os atentados a cristãos em países islâmicos. Sobre o assunto, já aqui escreveram Pedro Correia e Rui Rocha. Tenciono apenas chamar a atenção para o desprezo a que votamos uma parte importante do nosso passado. E quem insiste em esquecer o seu passado, ignora parte da sua própria identidade.

Embora, nos últimos anos, tenha havido um certo esforço por parte de alguns historiadores e arqueólogos, não existem obras profundas sobre o período islamita em terras portuguesas. Quem eram os líderes islâmicos que aqui dominaram durante quatro séculos? Quais os seus contributos para o desenvolvimento das regiões, da cultura, etc., etc.?

Sabe-se, por exemplo, que os mouros possuíam conhecimentos muito mais avançados do que os cristãos. Com as suas invenções, como a nora e outros sistemas de irrigação, que incluíam canais subterrâneos, fizeram florescer a agricultura em regiões inóspitas. Traduziram as obras dos filósofos e médicos gregos da Antiguidade para o árabe e, a partir daqui, para o latim, permitindo à Cristandade entrar em contacto com escritos esquecidos desde o desmoronar do Império Romano. Aliás, tomando o exemplo da Medicina, não se pode comparar o nível dos médicos islâmicos de então com os cristãos, razão pela qual aqueles eram procurados pelos próprios monarcas hispânicos. Que tentavam, ainda, imitar, a todo o custo, o luxo e a grandeza das cortes mouras.

O próprio D. Afonso Henriques teve uma relação de amizade com Ibn Qasî, um líder islâmico originário de Silves. O teor dessa amizade ainda hoje se encontra coberto pela penumbra, pois falta quem se interesse pelo assunto. Ibn Qasî era líder do movimento espiritual sufi, que tinha o seu centro em Mértola.

Muito mais haveria para dizer sobre o tema, mas, como este texto se resume a uma chamada de atenção, refiro um último aspecto: a influência moura em Portugal não acabou com a conquista do Algarve por D. Afonso III. Persistiram as mourarias, os bairros destinados aos mouros, nas cidades mais importantes do reino. Num lindíssimo livro (tanto a nível de texto, como de ilustrações) intitulado “Em busca da Lisboa Árabe”, publicado pelos CTT em 2007, Adalberto Alves fala-nos no drama vivido pelos últimos mouros em terras portuguesas, depois de D. Manuel I decretar, em 1496, a expulsão do reino de todos os que não se convertessem à fé católica.

Muitos conseguiram simular uma integração, mas ficaram sujeitos às mais variadas atribulações, no que constituiu um dos maiores dramas da História da Península do século XVI. Como nos diz Adalberto Alves, na obra referida: “transformados em marginais, rufiões e desclassificados, ébrios de fatalidade, frequentavam ainda Alfama e Mouraria vagueando como fantasmas gastos, sob a pálida memória dos seus antepassados”; “inventam um género musical e com ele cantam o seu fado”; “ao percorrermos certas alfurjas esquecidas de Lisboa antiga, parece sentirmos ainda como que os ecos longínquos desses fados esquecidos, onde o árabe se enroupava em português para exprimir o lamento dos humilhados do destino.”

No livro, é ainda reproduzida, na página 147, uma fotografia do autor na companhia de Amália Rodrigues, que, como Adalberto Alves nos diz, “estava intimamente convicta da parentela entre o fado e a música árabe, que muito apreciava”.

Para quando estudos sérios (livros, ensaios, programas de televisão) sobre este e outros aspectos da cultura moura em Portugal?

Quando deixaremos nós de desprezar a nossa herança islâmica?

 

Cristina Torrão

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