Notas sobre os processos revolucionários em curso (1)
Uma certa casta de comentadores continua a investir o seu esforço na tarefa de encontrar argumentos que contrariem a legitimidade das revoluções populares da Túnisa e do Egipto. Depois de invocada a ameaça islâmica, há quem tenha avançado para i) a constatação da falta de alternativas credíveis às lideranças dos ditadores desses países; ii) para a tese da inviabilidade da democracia em certas geografias, iii) para a defesa das múmias. Estamos, ainda e sempre, perante a afirmação da mais bacoca superioridade civilizacional. Para os egípcios e tunisinos, dizem, é melhor um ditador competente do que um democrata impreparado. Este é um argumento com inaceitável conteúdo totalitário. A liberdade é um valor. A competência é uma qualidade. A competência nunca poderá ser moeda de troca da liberdade. A ausência de lideranças alternativas é um desígnio da própria ditadura. Não é por isso que se deve beneficiar o infractor. Para além disso, a premissa é falsa. Seria bom que estes postadores ilustrados pudessem apresentar o seu argumento sobre a preparação e competência de Mubarak às centenas de milhares de pessoas que vivem na mais miserável indigência nos arredores do Cairo. Por outro lado, não consigo encontrar racionalidade na ideia de que um país ou uma região, não estando preparados para a democracia, possam estar preparados para uma ditadura. Francamente, a fábula do ditador útil e bonzinho não é para gente crescida. Como teste definitivo à validade destas teses proponho um caso de estudo. Em que posição ficaria nesse argumentário o Portugal que foi entregue às mãos de Vasco Gonçalves? No que diz respeito à tese da defesas das múmias, parecem-me estas muito importantes. E penso que devem ser feitos todos os esforços para preservar o património cultural que é uma marca da humanidade. Mas, não encontro ponto de partida que nos permita aceitar que uma parte de humanidade viva em privação de liberdade e dignidade com o objectivo de preservar as múmias. No fundo, o que este tipo de argumentos esconde é uma desorientação e um incómodo. O erudito geo-estratega da bloga ou da imprensa tem o seu quadro mental preparado para uma certa tipologia de acontecimentos: as revoluções não acontecem em países liderados por ditadores 'amigos'. Perante a evidência de que esta asserção estava errada, resta-lhes recolher do baú dos trastes uma ou outra sentença de condenação dos povos em causa a uma vida de injustiça. Antes isso que pôr em causa as verdades absolutas em que querem continuar a acreditar. Para além do mais, sempre asseguram a si próprios o conforto de poderem acertar nas piores previsões. Equiparam-se, neste aspecto, aos relógios parados que têm razão duas vezes ao dia. E esquecem-se que tornam evidente a diferença que existe entre os que defendem a liberdade em qualquer lugar e os que pensam que a liberdade é o lugar onde se defendem os interesses (ainda que este interesse seja a mera validação das suas teses auto-confirmatórias).