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Delito de Opinião

Tiananmen nunca mais

Pedro Correia, 01.02.11

 

 

Ouço e leio alguns cínicos de turno, à esquerda e à direita, recomendando palavras de precaução contra as imagens impressionantes que nos vão chegando do Cairo e repetem as de há duas semanas na Tunísia. No momento em que escrevo estas linhas, mais de um milhão de pessoas afluíram já à Praça de Libertação, no coração da capital egípcia, para reclamarem aquilo a que todos os povos de todas as latitudes deviam ter direito: liberdade. Sem adereços, sem adjectivos. A simples, pura, antiga e sempre desejável liberdade - palavra tantas vezes pervertida quando vem da boca de políticos que fazem tudo para a espezinhar. Políticos como Hosni Mubarak, um dos tiranos há mais tempo em funções no continente africano.  

"As pessoas deixaram de ter medo", diz uma jovem, algures na multidão, à reportagem da BBC. Algo impensável ainda há poucos dias no mais populoso dos países árabes. Como era impensável também, para os defensores da "estabilidade" a todo o preço, que a ditadura de Ben Ali ruísse como um castelo de cartas poucas semanas após um jovem desesperado se ter imolado pelo fogo. Chamava-se Mohamed Bouazizi. Mal podia imaginar que aquelas trágicas labaredas que lhe custaram a vida iriam desencadear um incêndio sem precedentes por todo o mundo árabe.

Ontem à noite, também na BBC, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Jordânia advertia: "Se aconteceu na Tunísia, pode acontecer em qualquer outro país." A crise económica, particularmente dura entre os jovens, transformou drasticamente a relação entre estado e sociedade nos países árabes, submetidos durante décadas a regimes assentes na repressão e na corrupção - um cocktail só tornado possível, em muitos casos, graças à generosa ajuda ocidental: só no ano passado, Mubarak recebeu 1300 milhões de dólares em ajuda militar dos Estados Unidos. 

 

 

Chegou-se a um ponto sem retorno, o que parece apavorar alguns "pragmáticos" de serviço, receosos do extremismo islâmico e de outros vírus que poderão contaminar o Egipto - onde vive um terço de toda a população árabe - à boleia dos ventos da liberdade. Conheço bem estes argumentos: já os escutei em 1989 e 1990, quando o império soviético ruía. Muitos preferiam o mundo arrumadinho em dois blocos imóveis para poupar o planeta a "novos conflitos". Falavam do lado de cá, gozando da liberdade que não queriam conceder aos do outro lado - como se os direitos humanos não devessem ter expressão universal. Foram os mesmos que, pelo mesmíssimo motivo, mal contiveram expressões de alívio quando viram o exército chinês reprimir ferozmente manifestantes pacíficos na Praça Tiananmen. O mundo ficava mais "previsível", menos "perigoso".

Não perceberam nada então, tal como não querem perceber nada agora: é hoje impossível delimitar fronteiras geo-estratégicas à expansão dos direitos humanos. Nem travar o espírito refomista contra os regimes que esmagam as liberdades. A ditadura teocrática iraniana certamente acompanha com a máxima apreensão o que está a suceder no Cairo. Porque, nestes dias em que as manifestações são convocadas através da Internet, em Teerão pode acontecer o mesmo a qualquer altura. Como já sucedeu em Junho de 2009. E as imagens que hoje chegam do Cairo são capazes de contagiar vários outros países - Líbia, Argélia, Marrocos, Jordânia, Síria, Iémene, Omã e Arábia Saudita.

Os militares egípcios já garantiram que não virarão as armas contra o povo. A gigantesca manifestação que neste momento ocorre funciona, até por isso, como um genuíno plebiscito à liberdade.

3 comentários

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    Pedro Correia 01.02.2011

    Disse que a sua posição está tomada. O defeito terá sido meu, mas não entendi qual é. Considera que a conquista da liberdade, só por si, não é objectivo suficiente para justificar o derrube de um regime tirânico?
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    Anónimo 01.02.2011

    Escrevi um pouco à pressa e o início do comentário anterior está confuso. O meu ponto de vista é que a revolução não pode parar na queda do governo oligárquico. (Deve desde já alastrar-se a outras zonas do globo...). A revolução tem de expropriar os latifúndios, tomar desde já conta dos recursos naturais sem proceder a qualquer tipo de pagamento às multinacionais e expropriar a burguesia que indevidamente se apropriou da riqueza do povo durante estas três décadas. Portanto, a queda do regime tirânico está em si justificada pela conquista da liberdade, mas esta tem de ser maior que a liberdade de viver como pobre num país que tem sido saqueado com a conivência do Ocidente.

    O que para mim é claro é que revolução tem de avançar sem mários soares nem carluccis, compreende? Confesso que tenho pouca esperança, o grupo com que V. se identifica sairá vencedor - o representante dos Direitos Humanos, Nobel da Paz e acima de tudo personagem simpática com que o Ocidente se identifica, tratará de baralhar para que "tudo" (à excepção da liberdade de votar e exprimir livremente) permaneça na mesma.

    A ideologia com que eu me identifico tem pouca expressão - nem há partido revolucionário nem o anarquismo militante tem tradição - apesar de termos assistido a episódios de auto-organização muito interessantes, que teria todo o gosto de ver reproduzidos um pouco por toda a parte, desde a China até Portugal.

    Saudações democráticas.
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