Allende suicidou-se, e pronto!
Allende suicidou-se, e pronto. Qualquer que seja o resultado das investigações do juiz Mario Corrazo, nada alterará isso. Primeiro pelo peso das declarações da única testemunha da morte, um dos seus médicos pessoais, segundo porque as verdades que acompanham os mitos são, por natureza, indestrutíveis, terceiro porque, mesmo que se provasse que fora morto pelos prussianos que assaltaram La Moneda, a justiça chilena, demasiado pútrida, jamais encontraria os culpados, se os encontrasse nunca os processaria, se os processasse nunca os julgaria, se os julgasse nunca condenaria, e se os condenasse eles jamais cumpririam qualquer pena. Estamos portanto perante um caso encerrado antes de aberto – aliás aberto só por o nome do antigo Presidente constar na lista dos mais de 700 casos nunca investigados. O que está a acontecer é apenas uma performance político-jurídica. Allende suicidou-se porque tinha jurado que nunca aceitaria o exílio e que só abandonaria o cargo, para que fora livremente eleito pelos chilenos, com os pés para a frente – que foi o que aconteceu, no dia 11 de Setembro de 1973, pelo 80 da Morandé, a modesta porta de serviço do palácio por onde entrava e saía sempre. De qualquer modo se não se tivesse suicidado teria sido morto, leia-se neste sentido a Interferencia Secreta, de Patricia Verdugo, ou ouça-se o registo rádio da conspiração. Mas admitindo, por absurdo, que se descobriria que fora morto, à performance seguir-se-ia o teatro. O que é a justiça chilena, está bem ilustrado no Livro Negro da Justiça Chilena, de Alejandra Matus – que aliás teve de se exilar para não sofrer algum inesperado acidente. Ela não é toda igual, evidentemente, tem pessoas como Hugo Gutiérrez, o juiz Tapia, o próprio Corrazo, um juiz com provas dadas, e outros. Mas é só um pequeno grupo de gente asseada contra um esquema sujo, para mais agora com o poder ocupado pela mesma direita que há anos tenta branquear as atrocidades do regime militar e fazer dos tribunais, magistrados e leis uma paródia. Allende suicidou-se, e pronto. Viu-o Patricio Guijón; assegura-o outro dos seus médicos, Óscar Soto Guzmán, no livro El Último dia de Salvador Allende e nas declarações que voltou a fazer; garante-o Isabel Allende, numa entrevista que me deu, em 1998, em Santiago, e noutras; afirmou-o a antiga secretária, Miria Payitas; declarou-o Carlos Altamirano; reconheceu-o até Patrício Aylwin, mesmo da forma no mínimo despudorada que usou: “El suicidio de Allende podría explicarse por el curso frívolo y de autoengrandecimiento en el que se había embarcado el Presidente”. Esperemos então pela confirmação do suicídio. A justiça de que a justiça chilena é capaz, para não falar de como deixou escapar Pinochet, está aí, na maneira como está a tratar os assassinos de Victor Jara, um dos primeiros a cair nos primeiros dias do golpe, a mesma que afagou, como afagou, os que mataram Jécar Neghme, o último a ser abatido, por militares que agora andam tão libres como a pomba Libre da canção de Nino Bravo, nos últimos da ditadura. Salvador Allende suicidou-se, e pronto.