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Delito de Opinião

O cartão de cidadão, as eleições e a responsabilidade de Rui Pereira

Rui Rocha, 27.01.11

Em 23 de Janeiro de 2011 o cartão de cidadão sofreu uma derrota de proporções bíblicas. Perante esta evidência, sobra a discussão sobre o alcance da responsabilidade. Exclusivamente técnica, diz ainda hoje o Ministro Silva Pereira. Política, clamamos muitos outros. Isto leva-nos a questionar o próprio conceito de responsabilidade. Num primeiro sentido, este pode ser entendido como compromisso com as obrigações. A questão a colocar neste domínio é saber se Rui Pereira investiu os meios necessários (o esforço, a orientação, o acompanhamento) adequados a garantir um certo resultado. É, provavelmente, algo que nunca saberemos. Podemos até presumir que sim. Por isso, nunca estaremos em condições de julgar o comportamento do Ministro com base neste critério. A segunda acepção apela já não aos meios, mas aos resultados considerados enquanto tais. Aquilo que os anglo-saxões referem como accountability. Os resultados, em si mesmos, são péssimos. É óbvio que o sistema não funcionou. A questão é que, quando medimos os resultados propriamente ditos, estamos na verdade a colocar a questão técnica. Isto é, permanece a possibilidade de o Ministro ter dedicado o seu esforço na coordenação do processo (meios) e de  ter fixado correctamente os objectivos (resultados). E que a equipa tenha montado uma operação tecnicamente inadequada, sendo que o Ministro não tem obrigação de possuir os conhecimentos que lhe permitam aferir a validade do modelo adoptado. Até aqui, portanto, não se encontram fundamentos sólidos para defender uma responsabilidade directa de Rui Pereira. Todavia, a análise não se pode ficar pela questão dos meios e dos resultados. Existe um terceiro vector que deve ser considerado. O das consequências. E estas são gravíssimas. Milhares e milhares de eleitores foram perturbados ou irremediavelmente impedidos de exerecer o direito mais básico de cidadania democrática. A democracia não é o governo (em sentido lato) pelo povo. É governo pelos representantes do povo. E o voto, para além de uma escolha aberta entre os candidatos, encerra ainda o profundo valor de permitir aos cidadãos substituir os anteriores representantes sem terem que recorrer a uma guerra ou a uma revolução. Perturbar o exercício básico da cidadania, ainda que de forma involuntária, é converter, temporariamente, os eleitores afectados em não-cidadãos. Por outro lado, a legitimidade da actuação política tem como fundamento originário o voto. Mas, a cada decisão, essa legitimidade originária vai-se renovando através de um mecanismo de confiança. Neste caso concreto, a gravidade das consequências tem o potencial de afectar, de forma objectiva, a confiança dos cidadãos nos mecanismos eleitorais e nas Instituições (imagine-se que as eleições tinham sido decididas por umas centenas de votos...). A perda potencial de confiança no processo básico da democracia (a eleição) afecta de forma irremediável a própria confiança política no Ministro que tutela o processo. Até ao momento, percorremos algumas das etapas de responsabilização. Da fase 'a culpa morre solteira' avançámos para a do 'quem se lixa é o mexilhão técnico'. Em paralelo, corre o indispensável  'rigoroso processo de inquérito'. Todavia, a confiança não se mede por inquérito. Tem-se. Ou não. E Rui Pereira perdeu-a. Neste contexto, a demissão impõe-se como forma de restaurar a confiança dos cidadãos no sistema democrático e nas instituições. E isso deve ser feito, em nome do interesse comum, ainda que implique um sacrifício individual, porventura injusto do ponto de vista estrito da apreciação da culpa. Esta é matéria de avaliação de consequências, confiança e legitimidade. E não de medida da culpa ou de aplicação de justiça.

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