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Delito de Opinião

O Estado Novo há 50 anos (1961)

João Carvalho, 13.01.11

 

I — O ANO QUE FEZ TREMER O REGIME

Salazar e a Igreja

 

A 13 de Janeiro de 1961, o cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira (1888–1977), Patriarca de Lisboa, emite — pressionado por Salazar — uma nota pastoral a pretexto da notória instabilidade que se vive no Ultramar português e, sobretudo, para contrariar um documento recente da diocese de Luanda, no qual o prelado Moisés Alves de Pinho defende as «aspirações justas e legítimas dos negros», apoiado por outros elementos do clero angolano.

No dia seguinte, a imprensa dá ampla conta da posição oficial da Igreja, assim considerada por ser proveniente do Patriarcado e por este distribuída. Só que a guerra em Angola já se sabe que é inevitável e está iminente. O que não se sabe é que vários outros acontecimentos ao longo dos doze meses do ano vão provocar muitos abalos e alguns danos externos ao regime.

 

Fora do País, quem está em oposição àquela nota pastoral — e até contra uma sequência de posições do cardeal-patriarca e da conferência episcopal — é D. António Ferreira Gomes (1906–1989), bispo do Porto. Posteriormente, há-de garantir que, se estivesse em Portugal, nunca teria permitido que o cardeal se pronunciasse em nome do episcopado nem que aquela nota saísse, por ser abusivo dar a ideia de que a Igreja está solidária com aquela linha de pensamento. Exilado pelo regime, as suas atitudes frontais são já conhecidas há muito. Recorde-se o que acontecera.

«Em 1958, o bispo do Porto, depois de duas intervenções entendidas como críticas à situação, dirige uma carta a Salazar em que reclama a liberdade de os católicos defenderem os princípios sociais da Igreja. Considerado incómodo para o regime e aconselhado a afastar-se, o bispo desloca-se a Roma no ano seguinte (atraído pelo ex-arcebispo de Goa D. José da Costa Nunes, que está na Santa Sé e aceita concertar a cilada com Salazar) e, na volta, é impedido de entrar no País, ficando em Tuy (na Galiza) e passando a viver entre Espanha, França (em Lourdes) e o Vaticano.

Em rigor, não tem o estatuto de exilado político e não chega a ser substituído como bispo do Porto. O Papa João XXIII — Ângelo Giuseppe Roncalli (1881–1963) — nomeia-o para uma das comissões que preparam o concílio Vaticano II e o seu regresso só vai ser possível dez anos mais tarde, em 1969, na sequência de um movimento em que sobressai o advogado portuense e católico activo Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro (1934–1980), num envolvimento que o transporta à política, para se destacar depois como deputado da "ala liberal" nos finais do Estado Novo, durante a prometida e gorada "primavera marcelista".» (João Carvalho, O Supremo Tribunal de Justiça em Portugal: Dois Séculos e Quatro Regimes de Memórias, STJ/Almedina, 2003.)

 

Apesar do afastamento do bispo do Porto, Salazar não conseguira que a Igreja o substituísse, nem evitara o epíteto de «exilado político». Podia dar a batalha como ganha, mas não fôra limpa como lhe seria conveniente e, ainda por cima, não vira todas as suas vontades satisfeitas pela Igreja — apenas algumas e, mesmo assim, fora do tempo útil — tanto em relação a D. António Ferreira Gomes como a outros membros do clero. O que o Presidente do Conselho não parecia adivinhar é que havia uma guerra surda já em marcha contra o regime, além da guerra aberta que vai estalar em África, e que aquela batalha, mal resolvida pelo cardeal-patriarca nesse dia 13 de Janeiro, era apenas uma pequena parte dos confrontos que iam seguir-se.

Se ele estava em condições de adivinhar que a situação ia tremer, talvez preferisse não acreditar que houvesse figuras com atrevimento bastante para saltar do sistema e virar-se contra ele. Por isso, ainda esticou a corda: vários clérigos de Angola tiveram de enfrentar a PIDE, regressaram à Metrópole e foram "emprateleirados" longe dos púlpitos, alguns deles com a obrigação de se apresentar regularmente às autoridades. Salazar ficara agastado com o cardeal-patriarca por este não controlar o clero e por não ver a Igreja reconhecer com clareza o que devia ao Estado Novo.

 

O ano de 1961 vai ser agitado e acabará por deixar marcas num salazarismo desnecessariamente duro e bolorento que se prolonga sem motivo, depois de perder todas as oportunidades para se afastar. O Portugal do pós-Guerra, que se pôs a jeito para receber uma fatia do Plano Marshall (destinado à recuperação da Europa devastada por um conflito em que o nosso país não entrara) e que consegue equilibrar as contas públicas, recusara abrir-se e participar na renovação europeia.

Portugal ficava "orgulhosamente" só ou mal acompanhado pela Espanha franquista, com a qual nem sequer mantinha relações de especial proximidade. Faltou até o rasgo para seguir o exemplo do Benelux, quando a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo se adiantaram ao pacto europeu posto em marcha e deram um inteligente e feliz passo em frente. Salazar e Franco foram incapazes de conceber um espaço ibérico de desenvolvimento partilhado e os portugueses tiveram de continuar a ir comprar à socapa caramelos espanhóis e a ser revistados até ao tutano na fronteira por causa de uns artigos caseiros que pudessem trazer.

Nesta situação, é natural que o Estado Novo enfrente sérios contratempos, gerados no interior do próprio poder e projectados além-fronteiras. Recordaremos de forma sucinta, nesta série que começa hoje e culminará em Dezembro, esse Portugal há meio século, através da cronologia do annus horribilis para o regime de Salazar que foi 1961.

 

Imagens

· Fátima: fiéis durante a "dança do Sol" (13 de Outubro de 1917)

· D. António Ferreira Gomes (retrato a óleo)

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