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Delito de Opinião

Convidado: FRANCISCO CURATE

Pedro Correia, 16.12.10

 

Psychozoa

 

Possivelmente nunca ouviram falar da mandíbula de Mauer. Apesar das muitas revelações e subtilezas da paleoantropologia – a começar pela exposição da nossa origem – o universo pouco solar do Homo heidelbergensis permanece desconhecido. A história desta humanidade alternativa é uma história de recato científico. Perto de Burgos, na serra de Atapuerca, há 350.000 anos (mais ano, menos ano), viveram e morreram pouco mais de trinta indivíduos desta espécie. «Elvis» (uma existência condensada nos ossos da bacia e em algumas vértebras lombares) é, talvez, o sujeito mais bem estudado do grupo. Velho, torcido, curvado e doente – como um pinheiro batido pelo vento, mas pior – foi alimentado e tratado durante muitos anos pelo resto do clã, mostrando aos cientistas e ao mundo como era ser-se humano avant la lettre.

De certo modo, cuidar dos mais velhos não é mais que uma tradução da base formulaica «Honra o teu pai e a tua mãe». O rabino Neusner pode ter alguma razão quando vê neste mandamento a base do núcleo social israelita. Outro judeu genial, Freud, reduz qualquer religião a uma busca pelo pai, a uma ambivalência edipiana que pode ter a sua origem nesta primeira achega ocorrida na Sima de los Huesos. Mesmo o sertão de Riobaldo Tatarana pode funcionar como um pai vicário; Tatarana vale-se das figuras paternas de Zé Bebelo, Joca Ramiro, Medeiro Vaz e novamente Zé Bebelo – mais do que se vale do diabo, que aliás nem tem a certeza que exista.

Quando o bando de Burgos começa a zelar pelos mais velhos, esquece também a ditadura da biologia e um dos seus preceitos maiores: a sobrevivência dos mais fortes (cujo corolário implica a extinção dos mais fracos). Neste sentido, inaugura também a ideia de uma esquerda darwinista (Peter Singer, «A Darwinist Left: Politics, Evolution and Cooperation») – uma referência incessante ao excluído, ao fraco. Evidentemente, prefiro acreditar (com Emerson e Whitman) que as partes mais antigas da humanidade são divinas e não naturais – mas não quero parecer demasiado optimista. Afinal, os velhos em Portugal reduzem-se a minudências inoportunas. A velhice, mais do que nunca, é um fardo mais pesado que o Etna (nas irrepreensíveis palavras de Marco Túlio Cícero).

Uma palavra final para o «canibalismo» que a descendência burgalesa de Mauer decerto praticava também. A linguagem científica deveria abster-se de certas familiaridades. Pode dizer-se que a pandilha das cavernas de Burgos cuidava dos mais velhos, mas nem por isso é permissível a achega equívoca: «e comia os mais novos». No mundo post factum da paleoantropologia (uma ciência táctil) alguém deveria saber que nem sempre se come com a boca.

 

Francisco Curate

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