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Delito de Opinião

A Scanner Darkly

João Campos, 08.12.10

Normalmente, quando publico aqui no Delito as minhas curtas recensões de ficção científica, faço-o apenas depois de ter lido os livros sobre os quais escrevo. Tenho três na calha, por manifesta falta de tempo (e de inspiração), mas hoje vou abrir uma excepção e falar de um livro que ainda estou a ler: A Scanner Darkly, de Philip K. Dick. Sobretudo por um motivo: A Scanner Darkly, com a sua escrita alucinada e uma narrativa tão psicadélica como as drogas de que fala, pode muito bem ser o exemplo perfeito de um livro de ficção científica que, por si só, devia afastar qualquer preconceito de género. Houve alguns livros sci-fi que pularam a cerca, passe a expressão, e se impuseram como referências na literatura mundial, talvez não por serem obras de ficção científica, mas apesar de serem obras de ficção científica - como bons exemplos, poderia apresentar Farenheit 451, de Ray Bradbury, A Clockwork Orange, de Anthony Burgess, ou, claro, Nineteen Eighty-Four, de George Orwell. A Scanner Darkly não fica atrás de nenhum destes - é, muito justamente, considerada uma das obras maiores de Philip K. Dick, ele mesmo considerado por muitos um dos maiores escritores de ficção científica de sempre.

A Scanner Darkly contém alguns elementos autobiográficos, e tem no consumo de drogas e respectivos efeitos o centro da história. A narrativa centra-se em Bob Arctor, nos seus amigos e colegas de casa Jim Barris e Ernie Luckman, e na sua namorada Donna Hawthorne. Arctor é polícia numa brigada de narcóticos, com a identidade de "Fred", e encontra-se a investigar os seus próprios amigos e a sua própria namorada. Nem estes sabem que Bob é, na verdade, um polícia disfarçado, nem a polícia sabe - para evitar a corrupção tão habitual no interior das brigadas de narcóticos - que "Fred" é, na verdade, Bob Arctor. O problema é que, para manter o disfarce, Arctor tem de consumir as drogas que está a investigar. Nomeadamente, uma droga conhecida como "Substância D", bastante viciante e com efeitos, por norma, devastadores.

Mencionei acima a "escrita alucinada" e a "narrativa psicadélica" de A Scanner Darkly. Faltaram-me adjectivos melhores, confesso; mas a verdade é esta: as quatro personagens principais da história estão quase sempre sob o efeito de drogas, e Philip K. Dick soube traduzir com mestria a vertigem desse estado para a escrita. Algumas passagens são verdadeiras alucinações, pela forma como prendem a atenção do leitor e insistem em desafiar uma lógica que se sabe não existir. Há uma passagem muito interessante (e famosa) que disso é exemplo: quando Arctor, Barris, Luckman e Donna discutem acaloradamente sobre a quantidade de mudanças que uma bicicleta tem. Parece parvo, eu sei, mas acreditem: é um diálogo absolutamente brilhante, entre os melhores que já li.

Uma vez mais, ainda não concluí a leitura do livro. Mas recomendo-o desde já.

 

Esta obra (como muitas outras de Philip K. Dick) foi já também adaptada para cinema em 2006. O realizador foi Richard Linklater, e o filme conta com as interpretações de Keanu Reeves, Robert Downey Jr., Woody Harrelson e Winona Ryder. Não sendo uma obra-prima, é um filme interessante, com momentos deliciosamente adaptados do livro (como a discussão sobre as mudanças da bicicleta, uma vez mais) e que utiliza uma curiosa técnica de animação. Sim, é um filme de animação, criada, tanto quanto sei, em pós-produção, como se o filme fosse reconvertido para animação, ou algo assim: falta-me a linguagem técnica. O que pouco importa aqui: o efeito é surpreendente, sobretudo devido ao enredo já de si "alucinado".

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