Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Convidada: NICOLINA CABRITA

Pedro Correia, 03.12.10

 

Doze Homens em Fúria

 

«Envia lá o texto», escreveste tu, Pedro, numa insistência gentil. Tens razão. Uma semana já lá vai, desde o teu convite, e o raio do texto que não me sai... «Escreve sobre Justiça, que é sempre actual», acrescentaste, julgando ajudar-me, sabendo que, de todos os possíveis, é suposto ser o assunto mais fácil, por fazer parte da minha vida há tantos anos. Mas, imagina tu, até não! Fácil seria discorrer sobre o aquecimento global e as cheias na Venezuela, ou então sobre este disco de Thomas Feiner ou este livro de Renata Correia Botelho. Agora sobre Justiça... Que posso eu escrever sobre o assunto? Algo que ainda não tenha sido escrito e susceptível de interessar os leitores do DELITO DE OPINIÃO?
E quem diz, Pedro, que a circunstância de ser advogada - uma «operadora judiciária», como agora é moda dizer dizer-se - garante que os teus leitores levem em conta a minha opinião ou, até, mostem disponibilidade para ler o que tenho para escrever?
Não me aconteceu já apanhar um táxi, indicar a direcção pretendida e, revelada a minha actividade, ouvir do motorista um sermão, quando não um ralhete?

Não me aconteceu já abrir o jornal, encontrar uma notícia relativa a um processo que conheço bem, e descobrir que as meias verdades aí relatadas, conjugadas em função de uma série de infelizes coincidências, resultam numa enorme MENTIRA de METER NOJO? (Por favor, releva a expressão «meter nojo». Sei que é excessiva, mas pelo que me é dado ver é a única forma certa de garantir a atenção dos leitores, e a vontade de seguir até ao fim do texto. Compreende, por favor: não posso perder aquela que será, provavelmente, a última oportunidades que me é oferecida de gritar, aos quatro ventos, o que há tanto tempo - há demasiado tempo - está atravessado na minha garganta, como uma espinha de carapau, talvez até um chicharro, que são grandes como o caraças!)

E não me aconteceu já abrir a televisão, e dar de caras com um advogado a dizer umas banalidades a propósito de um processo confiado a um colega, sob vagos pretextos informativos, mas cujos reais objectivos me parecem ser muito diferentes, e frequentemente tenho dificuldade em descortinar? Tu, que és jornalista, Pedro, diz-me, por favor: não te parece que anda, por aí, muito jornalista a fazer as vezes de advogado/magistrado (e imagina tu que, espantosamente, até conseguem fazê-lo em simultâneo) e, por outro lado, muito advogado e magistrado a fazer as vezes de jornalista?
Por que é que te lembraste de mim, Pedro? Foste gentil, eu sei, mas... para quê? O que é que adianta?

A razão do convite acho que sei. É fácil perceber. Ocorreu-te porque «ele há coincidências», não é? Coincidências em tudo semelhantes àquelas que o Francisco Seixas da Costa, tão brilhantemente, descreveu aqui. Refiro-me, concretamente, à coincidência que me fez perceber - a mim, leitora habitual do DO - que o jornalista Pedro Correia era aquele condiscípulo da faculdade, amigo próximo de outro condiscípulo e meu colega de ofício, Jorge Ferreira, que me foi referido por terceiros colegas, igualmente presentes na despedida ao Jorge, lá para os lados da Penha de França, fez agora um ano. E então, mais de 25 anos depois, ficámos a saber que tu és jornalista, e eu sou advogada, num país em que muitos jornalistas mais parecem advogados, e muitos advogados mais parecem jornalistas, e é tudo uma enorme «confusão de galhos», não é Pedro?

Porque quando me pediste para falar sobre a Justiça, não estavas, com certeza, a pensar que eu iria escrever sobre bastonários que também são jornalistas, e escrevem livros sobre combates, cujos títulos fazem lembrar outros livros que também têm lutas no título, mas tu não vais querer que eu escreva sobre isso, pois não?
Nem, tão pouco, sobre ordens profissionais, e eleições para órgãos de ordens profissionais, nem, menos ainda, programas e linhas de acção, porque os teus leitores não teriam paciência para ler esta prosa, e eu não tenho a menor vontade de escrever prosa que ninguém tem vontade de ler, até porque não sei. O que me ensinaram - e é suposto eu saber - foi a redigir requerimentos, articulados e alegações, porque a minha vida é feita deste tipo de prosa, e com esta prosa lá me vou safando, graças a Deus!
E que tal eu escrever o que me apeteceria escrever se, desde a data em que nos conhecemos até hoje, não tivessem passado quase 30 anos? Que tal escrever algo parecido ao que ambos teríamos escrito no tempo em que podíamos parecer ingénuos sem chocar ninguém, embora saiba (li aqui, no outro dia) que tu não tens medo de ser ingénuo e até achas (que coincidência, eu também!) que não há idade certa para se ser ingénuo. Porque, tal como eu, tu recordas ainda, com precisão, o que te fez querer ser jornalista. Watergate, não foi? Sabes ( felizmente, a ti posso confessar, porque sei que não te vais rir de mim), eu também lembro, com enormíssimo rigor, por que razão toda a minha vida (ou pelo menos, desde que me lembro) quis ser advogada. Estranho, não é? E também tenho um filme indelevelmente gravado na minha memória: o «Twelve Angry Men» de Sidney Lumet. Lembras-te dele? Pois é, esse mesmo, ou mais precisamente, este aqui:

 

 

Sei que também gostas de filmes antigos. Deixa, pois, que te explique o que, neste, me fascina, desde sempre, apesar de nele não aparecer um único advogado ou, sequer, um juiz. Os personagens são, apenas, jurados, doze cidadãos anónimos, escolhidos aleatoriamente. Doze cidadãos a quem cabe decidir se um rapaz, acusado de ter assassinado o pai, é ou não culpado, sabendo que um veredicto positivo implica a aplicação, pelo juiz, da pena capital. Nenhum destes cidadãos é formado em leis, nenhum recebeu formação para julgar os outros. E, no entanto, até chegarem a uma votação unânime, nenhum deles pode sair daquela sala ou falar com quem quer que seja. Nem um. Para decidir contam, apenas, com o que lhes foi relatado, durante o julgamento, e as respectivas consciências. Contam, sobretudo, com a recta intenção e a vontade de bem decidir do jurado n.º 8, porque só ele acredita que existem coincidência infelizes. Apenas um. E, no entanto, tu e eu, e ainda ( pelo menos) o Francisco Seixas da Costa, todos nós sabemos que as coincidências infelizes existem (olá se existem!). Mas será que o taxista, que no outro dia me transportou até ao tribunal, acredita, como o jurado n.º 8, que as coincidências infelizes existem? E os jornalistas que, pressurosos e prestáveis, debitam opiniões sobre processos que não conhecem, têm consciência (como eu, tu, e o Francisco Seixas da Costa) que os desígnios de Deus, às vezes (muitas vezes) são demasiado insondáveis e é preciso uma especialíssima atenção e cuidado nas análises? E será que os advogados que se prestam, igualmente pressurosos e prestáveis, a informar, com tanta concisão, o público, têm a noção do «ruído» que, muito frequentemente, introduzem nestas conversas, ruído que só serve para aumentar a confusão? E será, que aqueles que, no nosso sistema judicial, fazem as vezes dos jurados - os juízes togados - têm sempre uma vontade de bem decidir no mínimo equivalente à do jurado n.º 8? E achas possível fazer aqueles jurados - ou o que quer que seja que exista, com função equivalente - fazer o que aqueles doze homens fizeram, mas em directo, para o jornal da noite? Achas possível (e nem sequer digo, desejável) transformar doze jurados em doze milhões? E estarão os doze milhões preparados para assumir a responsabilidade de enviar um homem para a cadeia (e já nem falo numa que seja eléctrica porque, felizmente, e no caso português, esse problema parece-me ultrapassado, mas nos dias que correm, vá lá saber-se...) Estarão os doze milhões preparados para, daqui por trinta cinco anos, descobrir que lhes aconteceu isto?

 

A carta vai longa, Pedro e afinal, e sem dar por isso, acabei a escrever-te uma carta, e não um texto, como me pediste. Perdoas-me? Tenho esperança que sim, porque nós, os ingénuos, somos assim. Obrigada. Um beijo. Nicolina.

 

Nicolina Cabrita

2 comentários

  • Imagem de perfil

    Nicolina Cabrita 04.12.2010

    A minha Mãe iria ficar feliz se tivesse vivido o suficiente para ler o seu comentário, Analima. Foi com ela que aprendi que é necessário dominar a «besta» que existe dentro de nós. E eu tento. Obrigada. Um beijinho.
  • Comentar:

    Mais

    Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

    Este blog tem comentários moderados.