Os filmes da minha vida (24)
O melhor filme português de sempre.
No dia em que Manoel de Oliveira festeja 102 anos
Durante muito tempo, quando fazia a mim próprio a pergunta sobre qual seria o melhor filme português de sempre, hesitava na resposta.
Podia ser A Canção de Lisboa (1933), extraordinária comédia 'à portuguesa', como muito mais tarde se convencionou chamar -, prodígio de escrita cinematográfica, ímpar entre nós, com um trio de actores em estado de graça e uma agilíssima realização do arquitecto Cottinelli Telmo. Beatriz Costa, Vasco Santana e António Silva ainda hoje, tantas décadas depois, provocam gargalhadas no espectador com os seus diálogos saídos da inspiração de Chianca de Garcia e José Gomes Ferreira. É um filme cheio de momentos antológicos, como o da ida do falso veterinário Vasquinho ao jardim zoológico e a sua frase "Chapéus há muitos".
Podia ser O Pai Tirano (1941), outro filme único na nossa cinematografia - prova evidente de que o seu realizador, António Lopes Ribeiro, era não só um produtor de rasgo e um divulgador de mérito mas também um cineasta capaz de assinar um trabalho que transcendeu a sua época. Como Jean Renoir faria muito mais tarde em A Comédia e a Vida, aqui também o cinema e o teatro se enlaçam na banal existência quotidiana, gerando de caminho um singular retrato de um certo Portugal desses anos em que a guerra assolava o mundo. É um filme cheio de segundas intenções, começando pelo próprio título, e também percorrido por momentos antológicos protagonizados por excelentes actores, como Ribeirinho, Teresa Gomes, de novo Vasco Santana e uma fugaz diva do cinema português chamada Leonor Maia que passaria a ser conhecida por Tatão, o nome da sua personagem em O Pai Tirano. Haverá maior enlace entre a comédia e a vida?
Mas além destes dois houve sempre outro. Um filme que vi na altura apropriada, ainda criança. Porque é de crianças que trata. E não me lembro de mais nenhum produzido antes dele, em Portugal ou qualquer outra paragem, que soubesse tratar o mundo infantil de forma tão sensível e tão credível. Desde os instantes iniciais, com aquele inesquecivel pré-genérico que culminava no súbito aparecimento de um comboio em grande velocidade e um grito de horror. Falo de Aniki-Bóbó (1942): nada sabia do nome do realizador nem daquelas informações adicionais que fui acumulando sobre esta primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, produzida por Lopes Ribeiro. Mas impressionou-me como nenhuma outra, naquela época, esta história de uns meninos humildes na Ribeira do Porto que poderia servir de metáfora à condição humana. Adorei a personagem da menina Teresinha, aqueles cenários naturais que prenunciavam o fabuloso neo-realismo italiano e aquela pronúncia genuína e autêntica dos actores, nenhum deles profissional excepto Nascimento Fernandes.
(Sublinho o papel do sotaque porque é um pormenor técnico totalmente descurado nos filmes portugueses contemporâneos: hoje todos falam da mesma maneira nas longas-metragens, independentemente do lugar onde nasceram ou onde residem as personagens. Infelizmente a pronúncia do Norte quase desapareceu do cinema nacional.)
Pormenor interessante: Oliveira, que seria depois considerado o mais artificial dos nossos cineastas, assinou aqui aquele que seria durante muito tempo um dos filmes portugueses rodados em atmosfera mais real. Um pouco à semelhança de um Picasso, que subverteu as formas depois de mostrar ao mundo que sabia reproduzi-las com mestria clássica.
São poucos os filmes pelos quais nos apaixonamos e que conseguimos admirar em simultâneo. Aniki-Bóbó é um deles. Cada vez que o revejo vou consolidando a mnha convicção de que se trata do melhor filme português de todos os tempos.
Não sou o único a pensar assim: a Sight & Sound, uma das mais prestigiadas publicações sobre cinema à escala mundial, elaborou há uns anos a lista das 500 melhores películas de sempre. Só há uma portuguesa. Qual? Aniki-Bóbó.
ADENDA: Excelente notícia para os cinéfilos: Aniki-Bóbó está de regresso aos cinemas em cópia restaurada.