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Imolação
Primeiro calámos a orquestra, que insistia em envolver-nos de notas quentes, lânguidas, festivas. Incendiava-nos sempre sem pedir licença, lavrava por dentro de nós uma melodia hipnótica que nos privava de toda a vontade. Por isso lhe pegámos fogo, lentamente, meticulosamente, deixando que as lágrimas nos dançassem nos olhos ao som da música que se esvaía como sangue de um pulso dilacerado. Do allegro ao requiem.
Mas ficaram as palavras. Mesmo sem os sons que as vestiam de encantamento, ficaram as palavras. Havia que queimá-las também na mesma pira ardente, como as viúvas do Ganges no seu sati. E assim lançámos às chamas as palavras, nuas, indefesas, tremeluzindo numa despedida muda.
Mas ficou o silêncio. Um silêncio ensurdecedor, feito de cinzas, povoado pelos fantasmas de todas as notas e de todas as palavras que tínhamos morto inutilmente. Um silêncio que alastrou como um rastilho e se riu de nós, descarado, terrível, satânico. Era imperioso emudecê-lo depressa e por isso queimámos o silêncio, já sem forças para tanto sacrifício.
Mas ficámos nós.
(Imagem: René Magritte - A descoberta do fogo)