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Delito de Opinião

O herói de ontem é o tirano de hoje

Pedro Correia, 16.11.10

 

Em 1978, o político mais admirado e elogiado do continente africano chamava-se Robert Francis Mugabe. Acabara de assinar com o Governo de Margaret Thatcher o acordo de Lancaster House que pôs fim à década e meia do regime racista de Ian Smith na Rodésia, a antiga Rodésia do Sul, e preparava-se para ascender ao poder. No ano seguinte o país tornava-se independente, com o nome de Zimbábue, e Mugabe jurava mantê-lo como o celeiro da África Austral, garantindo a harmonia social e a prosperidade económica dos seus habitantes, de todas as raças. Num continente onde proliferavam os Bokassas, os Mobutus e os Idi Amins, as palavras moderadas de Mugabe soavam a discurso de estadista.

O líder do novo Zimbábue revelava fibra de resistente: permanecera uma década nas prisões de Smith e conduzira uma guerrilha que dobrara o domínio branco de Salisbúria, pondo fim a 90 anos de domínio britânico. Mas prometera estender a mão aos opressores do passado, o que lhe dava uma aura de invulgar grandeza. “Ontem eram meus inimigos, hoje são meus amigos”, disse à comunidade branca no discurso da independência.

Dez anos mais tarde, fez aprovar uma nova Constituição, que lhe permitiu trocar o cargo de primeiro-ministro pelo de Presidente da República, mas o essencial das promessas mantinha-se incólume: Harare continuava a ser capital de um dos mais prósperos países africanos, albergando uma sociedade multirracial. Não faltaram analistas a elogiar o “milagre” do Zimbábue.

 

Quem analisar com atenção o percurso político de Mugabe – um homem de formação católica que se tornou marxista quando estudava Direito numa universidade sul-africana – verifica que os primeiros sinais do ditador em que se tornou eram já detectáveis no início da década de 80, quando ainda merecia os mais rasgados elogios da imprensa internacional, pela forma brutal como esmagou aquele que era então o seu principal adversário político: Joshua Nkomo, líder da União Popular Africana do Zimbábue (Zapu). Nkomo foi, a par de Mugabe, um dos principais resistentes ao regime de Ian Smith. Após a independência, em 1980, integrou o Governo de unidade nacional como ministro do Interior. Menos de dois anos depois, Mugabe acusou-o de conspiração contra o Estado. Foi preso e pelo menos 20 mil dos seus apoiantes no Leste do país acabaram assassinados. A Zapu foi dissolvida e a União Nacional Africana do Zimbábue (Zanu), de Mugabe, tornou-se o partido único.

 

No ano 2000, a máscara caiu de vez. Mugabe lançou uma “reforma agrária – a ocupação pura e simples das propriedades agrícolas dos brancos. Suprimiu toda a oposição. Aboliu o poder judicial independente. Meteu na cadeia opositores, sindicalistas, estudantes e activistas de direitos humanos. Amordaçou a imprensa. E fez mergulhar o país no caos económico: em Outubro de 2008, segundo o Banco Central do Zimbábue, a inflação atingiu 231.000.000%. Milhões de zimbabuanos abandonaram o país para fugir à fome.

As ilusões do passado transformaram-se num interminável pesadelo. “Só Deus pode retirar-me o poder que me concedeu”, proclama Mugabe, hoje com 86 anos – o mais velho dirigente africano. O antigo estadista modelar, invocado outrora como exemplo no continente, é apenas mais um nome a juntar à longa lista de tiranos que vêm destruindo o sonho de uma África próspera, justa e livre.

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