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Sempre achei pouco credível o romance de Ray Bradbury Fahrenheit 451, uma distopia em que os livros foram banidos, são queimados e decorados por pessoas vivas. Observando o meu tempo, já não acho a ideia assim tão incrível. Em vários países cresce um movimento de contestação a figuras históricas e símbolos do passado. As estátuas são identificadas com tinta e segue-se um julgamento popular à maneira da revolução cultural. Depois, são derrubadas por uma turba feroz e qualquer tentativa de as repor será combatida com tumultos. Ao mesmo tempo, limita-se o acesso do público a obras de arte associadas a ideias que os manifestantes considerem perturbadoras. Pode ser uma pintura, um filme, um livro. O mecanismo de destruir estátuas não é novo, mas esteve sempre ligado a mudanças de regime. A prática de banir livros ou retirar filmes também não é nova, foi comum em épocas de intolerância e banalizada por fanáticos religiosos. A identidade das pessoas e dos povos está profundamente ligada à memória, por isso o novo radicalismo político não pretende fazer a revisão da história, mas apagá-la. É a melhor maneira de criar comunidades divididas e assegurar que numa época fragmentada se torne fácil abolir os factos. As diversas polícias do pensamento competem para impor a ortodoxia de vanguardas revolucionárias que dominam universidades e que procuram conquistar os meios de comunicação e as redes sociais. Sem ligações às origens, sem ideias próprias, desprovidos da alma, somos levados como crianças para onde eles nos quiserem levar. Para sítios desolados, como acontece na tirania comum.