Convidado: LOURENÇO CORDEIRO
Amor e casamento
Agora que se instalou a ideia de que Manuela Ferreira Leite tinha razão sobre todas as questões que nós sabíamos que Manuela Ferreira Leite tinha razão, convinha não deixar passar a oportunidade para afirmar que até nas questões em que nós achávamos que Manuela Ferreira Leite não tinha razão Manuela Ferreira Leite tinha razão.
Falo, como não poderia deixar de ser, da ideia de que «o casamento é para procriar», ideia que nós então repudiámos - ou melhor, ignorámos para poder votar em consciência - mas que agora somos forçados a aceitar em toda a sua beleza. O que surpreende nessa nossa atitude infantil é a constatação de que, ao fim destes anos todos, ainda não aprendemos que os velhos têm quase sempre razão. De facto, o casamento é mesmo para procriar, e quem pensa o contrário está equivocado, profundamente equivocado. O que está em cima da mesa não é um qualquer imperativo moralista, nem sequer moral: quando se diz que o casamento é para procriar não se está a dizer que a relação sexual é para procriar (uma deturpação desonesta muito frequente), e gostava que este equívoco fosse desfeito desde já. A relação sexual também serve para procriar, embora nem seja um requisito fundamental para a procriação, graças aos maravilhosos avanços tecnológicos na Medicina que viram o seu valor reconhecido este ano pela academia sueca; para além da procriação, a relação sexual tem toda uma série de vantagens que a recomendam e que em nada se relacionam com esta maravilhosa ideia de que «o casamento é para procriar».
Para aceitarmos esta ideia somos forçados a demolir essa construção moderna e artificial que dá pelo nome de «amor»; o «amor», como definido pela sociedade ocidental em meados do século XX, tem tanta coerência interna como o Pai Natal, apesar de não se apresentar sob um manto vermelho e branco que ajuda à sua popularidade. Não, o «amor» é a tradução para a linguagem do «caminho da felicidade» (totalmente impossível fora do domínio religioso) de um impulso biológico que tem como objectivo a perpetuação da espécie, aquilo a que Richard Dawkins chamou de «o gene egoísta». O «amor» é, portanto uma artificialidade necessária na construção de uma narrativa falaciosa que sustenta a ideia de que é possível acarinhar e respeitar e precisar de uma pessoa que não nós próprios durante toda a nossa vida, e em que o «casamento» surge como uma espécie de medalha que se enverga ao peito. Infelizmente, para quem tenta viver neste universo paralelo onde as leis da física não imperam, isso não acontece: o «amor» não se justifica a ele próprio, Deus não nos criou a todos para nos tornarmos em hedonistas.
O amor, a partir daqui sem aspas, tem um objectivo que extravasa a satisfação de dois indivíduos patéticos na sua insignificância: o amor é a antecâmara da descendência, e o casamento é a casa que se constrói para poder receber o amor. É a descendência que torna real a frágil concepção da transcendência da ligação amorosa, a ideia de que da união de duas pessoas se gera algo mais do que a simples soma das suas existências. É a descendência, e toda a transformação avassaladora que ela opera na nossa maneira de ver o mundo (ao ponto de nos convencermos de que o mundo mudou mesmo, e não apenas o nosso olhar sobre ele), que faz o milagre de nos mostrar que o amor que sentimos pelo outro é, de facto, singular e irrepetível, porque esse amor - um sentimento frágil e passível de ser destruído - deu origem à única relação absoluta que teremos na nossa vida, aquela que nasce no dia em que nascem os nossos filhos.
E é neste sentido que quem se casa deve perceber que esse gesto só passará a ter o seu significado pleno no dia em que for usado para contribuir para a perpetuação da espécie e para a sobrevivência dos nossos genes, que são os genes dos nossos pais, que eram os genes dos nossos avós, que foram os genes dos nossos antepassados todos que fizeram o favor de criar as condições para que nós existíssemos. Mas para além da aparente virtude que nasce da nossa inscrição na história da humanidade, a ideia de que o casamento é para procriar tem também uma validação de carácter egoísta e que nasce do orgulho incondicional que um pai tem por um filho, e do reconhecimento que esse orgulho é partilhado com outra pessoa e que dessa outra pessoa está para sempre dependente. O meu filho não é só o passaporte para a minha imortalidade (e é por isso que eu espero dele o mesmo que todos os pais esperam dos filhos, que nos dêem netos) mas é também a certeza de que o amor que eu sinto pela mãe dele não é, e sobretudo não era, fungível.
Esta verdade absoluta - «o casamento é para procriar» - não invalida nem desqualifica todos os esforços altruístas que a comunidade humana tem feito ao longo da história para negociar a injustiça que é o facto de nem toda a gente estar habilitada a participar no milagre que é o casamento heterossexual fecundo. Nesse sentido, a adopção, que é a criação de uma relação de paternidade à margem da biologia, ou o casamento homossexual, que é a criação de uma relação amorosa à margem da fecundidade, são respostas sociais a um sentimento de profunda injustiça que reconhecemos existir, e que portanto deverão ser acarinhadas como obras de engenharia de que nos devemos orgulhar. Neste aspecto, apesar de tudo lateral e secundário, Manuela Ferreira Leite não tinha razão.