Convidado: JOÃO PEDRO PIMENTA
Loren no Douro
Há mais de cinquenta anos, Sophia Loren entrava de rompante nas telas italianas, como nova estrela do cinema transalpino. Vinha de Nápoles, essa cidade onde coexistem o fausto e a miséria, suspirando por um passado em que dominava as Duas Sicílias, entre a sombra do Vesúvio e o brilho da sua baía. A actriz aliava uma beleza rara, em que se destacavam os enormes olhos, a um enorme talento dramático e um histrionismo pontual, à maneira de outras divas italianas da época, como Anna Magnani. Contracenou com monstros sagrados como Vittorio Gassman, Mastroianni, Clark Gable ou Paul Newman, e em tempos mais recentes, Jack Lemmon, Walter Matthau e Daniel Day-Lewis. Mas deve em grande parte a sua carreira a Carlo Ponti, o produtor cinematográfico junto do qual viveu uma conturbada história de amor que daria em casamento e dois filhos, e que só acabou há poucos anos, com a morte dele. Loren ganhou ainda o Óscar de melhor actriz em 1962, por Duas Mulheres, aos vinte e oito anos, tendo sido a primeira vez que se atribuiu o prémio a uma artista com língua não inglesa.
Nos anos sessenta, o Douro era já uma activa região produtora de vinho, graças à sua demarcação pioneira ordenada por Pombal duzentos anos antes. Era ainda o tempo em que as máquinas não tinham chegado às vindimas, as uvas eram pisadas nos lagares com a força das pernas e o trabalho era, regra geral, mais pesado. As estradas eram curvas e contracurvas entre os socalcos, antes da moderna A-24, e o comboio ainda ia até Barca de Alva, com afluentes para Bragança e Miranda. O rio, selvagem e perigoso, começava a ser domado pelas primeiras barragens, mas ainda passava com certa fúria em frente à Régua, e os rabelos eram ainda o modo de transporte do vinho até Gaia. A época das colheitas acabava geralmente com a tradicional festa das vindimas, muito antes das raves do Douro Sounds nas piscinas reguenses.
Aos cinemas da região, como o Teatro-Circo de Vila Real, o Avenida da Régua ou o Ribeiro da Conceição, de Lamego, chegavam as imagens de Loren e de outras divas da Sétima Arte. Entre os socalcos e as serras, os durienses sonhariam provavelmente com aquelas estrelas lá longe, inacessíveis. O cinema era coisa de dentro das telas, e as primeiras filmagens só chegaram à região com o mestre Manoel de Oliveira.
Mas com o tempo, o Douro ganhou divulgação, reconhecimento e potencial turístico, consagrados com a classificação de Património da Humanidade pela UNESCO. Tornou-se um destino de visita e entrou na moda. Com a melhoria das acessibilidades rodoviárias e fluviais - que não ferroviárias – surgiu a feliz ideia de criar um festival de cinema na região, o Douro Film Harvest. Com o apoio dos organismos públicos e privados ligados ao turismo, o projecto avançou e em 2009 conseguiu-se levar à região Andy McDowell, Milos Forman e Kyle Eastwood (filho do realizador de Gran Torino e compositor das bandas sonoras dos filmes do pai). Entretanto, Sabrosa pasmava com uma multidão a ver BB King ao vivo. Se no primeiro ano o sucesso da empreitada surpreendeu, em 2010 conseguiu-se ir mais além: além de figuras respeitáveis como Carlos Saura ou Gustavo Santaolalla, a organização do festival cometeu a ousadia de convidar a divina Sophia Loren para a sessão de encerramento. Como é vulgar nestas ocasiões, temeu-se que a diva não viesse, retida por superiores compromissos. No último dia do festival, o renovado teatro Ribeiro da Conceição, uma casa do século XVIII toda reconstruída para a sua função de espectáculo, esperava ansiosamente pela convidada. A multidão enervava-se no centro da antiquíssima urbe de Lamego, entre a Sé, o bairro de Almacave, testemunha das primeiras (embora de veracidade duvidosa) Cortes do Reino, e o santuário dos Remédios. Até que, pouco depois da hora, Sophia Loren pisou mesmo o palco da velha casa de espectáculos lamecense. Elegantíssima e altiva como sempre, apesar da idade, foi recebida com largos minutos de ovações e emoção. Não deixou de agradecer com as palavras de ocasião, ao lado de um embevecido Carlos do Carmo, ela, que ainda iria ser a convidada de honra num concerto no Pinhão. Seguiu-se a exibição do filme Matrimonio à Italiana, um dos muitos em que contracenou com Marcelo Mastroianni, e para o qual esteve nomeada para novo Óscar.
Há quem ache que a sua sucessora dos tempos actuais é Monica Bellucci, mas permito-me discordar dos entendidos: a mulher de Vincent Cassell tem um estilo mais frio, quase glacial, que recorda outra Monica, a igualmente belíssima Vitti. Ao ver uma espécie de medley da carreira de Loren, antes do filme propriamente dito, dei-me conta das suas parecenças na representação - e a dado momento mesmo físicas - com outra actriz, muito embora essa não seja italiana: Penélope Cruz. A mesma fogosidade, uma languidez semelhante, no fundo, o mesmo espírito latino e mediterrânico, comum às duas, se bem que a italiana acabe por ganhar só por causa daqueles olhos que enchem qualquer espaço em que se encontre. Se o Douro Film Harvest ganhar verdadeiramente raízes, como tudo indica, talvez daqui a umas décadas Cruz pise os cinemas durienses para receber um prémio de carreira. Mas, até lá, ninguém nos tira a visão de Sophia Loren cruzando majestosamente o palco de uma velha sala de teatro em Lamego. E quem, na região, nos anos sessenta, poderia alguma vez sonhar com esse dia?