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Delito de Opinião

Os velhos que paguem a crise

Leonor Barros, 04.10.10

Desconheço o nome da criatura. Apanhei-a pela manhã durante o pequeno-almoço, enquanto cumpria o vício e o ritual de me actualizar sobre o estado do país e do mundo. Dever-me-ei assustar com este gosto masoquista? Dizia então a criatura, e foi logo após as novas medidas do governo Sócrates, que os reformados deviam sofrer mais cortes e isto, segundo a dita comentadora, porque já não tinham encargos com a educação dos filhos e tinham uma redução de despesas. Portanto, e assim sendo, os reformados que não vivem declaradamente pobres ou no limiar da pobreza devem pagar a crise. Já que não têm filhos para alimentar nem para comprar livros nem gadgets nem roupa de marca nem saídas à noite, só têm é que pagar mais do que os restantes cidadãos. Argumento curioso, tão curioso quanto inane e injusto. Não interessa se os reformados, pensionistas ou como lhes queiram chamar, descontaram já uma vida inteira para a sua reforma, ou se já contribuíram com o melhor dos seus anos para este país. Nem todos vivem à custa de reformas chorudas de lugares ao sol por via de amigos, amiguinhos e amigalhaços. Há quem tenha trabalhado honestamente e muito, com dedicação e empenho, e cumprido a sua missão.

O que mais me encanitou, e se encanitou, foi, por um lado, o preconceito de que os velhos são mesmo velhos, seres a quem a força da gravidade foi lesta e os deixou de carnes dependuradas, desgraçadamente sem plásticas, e mentes toldadas pela neblina da memória embaciada, e que não têm vida própria nem o direito de, se lhes apetecer, ir a banhos para as Caraíbas ou ficar em casa a devorar os livros que não conseguiram durante a vida activa ou ainda fazer rigorosamente o que lhes der na gana. Por outro lado, esta ingerência na vida privada dos cidadãos não me deixou a mais calma das criaturas. E que temos nós a ver como e em quê os reformados gastam o dinheiro e que direito se tem de fazer inferências sobre a vida alheia apenas porque são velhos? E se não forem saudáveis e se precisarem de cuidados ou de pagar um lar? Nada disso interessa para a jovem e enxuta criatura, ainda com as carnes no lugar e a boca rápida em cuspir disparates. Neste país ser velho é igual a não ter qualquer dignidade. Pobre, destituído de tudo. Além de serem abandonados nos hospitais, vítimas de maus-tratos e de abusos têm também de pagar a crise. E por que não exterminá-los? Raio de gente.

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