Ceci n'est pas un post (10)
Liquefeito
Dir-te-ia que as águas subiram hoje de novo numa maré tão festiva como inútil porque de novo o navio se fez ao mar sem ti de velas desfraldadas num despudor que ainda te celebra. Dir-te-ia que de tanto fitar o horizonte os meus olhos confundiram já todos os azuis e fundiram todas as formas e refundiram todas as sombras. Dir-te-ia que as fronteiras se diluem sem retorno esbatidas pela maresia e pelo tempo. Dir-te-ia que me adormece o suave balanço das ondas no sussurro manso deste mar eterno que me deixaste de presente talvez para compensar a tua ausência. Dir-te-ia que sou já pedra búzio alga areia estrela-do-mar e que me vou habituando a este corpo mutante e a esta nova pele tão facilmente como me vou desabituando de ti. Dir-te-ia que as brumas já não me assustam e que a ronca do velho farol me canta ao ouvido canções de embalar à noite quando me abraça o nevoeiro imitando os teus braços longos de pirata. Dir-te-ia que a nossa casa me escorre agora da memória desabitada e nua. Dir-te-ia amor que o nosso mundo se liquefez.
(Imagem - René Magritte, O Sedutor)