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Delito de Opinião

Ceci n'est pas un post (7)

Ana Vidal, 28.10.10

 

Fénix

 

No dia em que tudo ruiu, fez-se à estrada. Não olhou para trás. Não procurou entre as cinzas, soterrados nos escombros de uma vida, sonhos desfeitos que ainda pudessem respirar. Não socorreu memórias sobreviventes, deixou-as asfixiar no fumo que sobrou da grande fogueira que tinha ateado, ainda inconsciente da catástrofe que se avizinhava. Passou por cima de gestos e de palavras, pisou sorrisos agonizantes com os pés nus, já calçados para a viagem. Escorraçou todas as lembranças que teimavam em agarrar-se-lhe à pele e afugentou fantasmas, velhos conhecidos a quererem transpor com ela a porta de entrada. Ou de saída. Só de saída, nesse dia. Lavou das narinas os cheiros familiares, expulsou dos olhos as imagens coloridas de arcos-íris passados, sacudiu das mãos o velho ímpeto de arrumar uma vez mais o caos, de repor a ordem, como sempre fizera. Não aplacou os demónios que bailavam por todo o lado, enfim vitoriosos, seguros do seu poder. Por uma vez, deu-lhes tudo o que exigiam. Fechou a porta atrás de si e atirou a chave para longe. Lá dentro, por detrás da madeira triste, uma vida acorrentada. Não levou nada, não queria nada. De seu, só uma indómita e urgente vontade de partir. Tudo o resto ficou para trás, e nunca mais lhe fez falta.

 

(Imagem: René Magritte)

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