Sobre a qualidade dos julgamentos
Parece que houve quem a considerasse leve, a pena de três anos aplicada em Inglaterra ao condutor português de um camião que abalroou numa autoestrada um carro parado na cauda de uma fila de trânsito. Matou seis pessoas (a condutora, o marido e os quatro filhos do casal) e esteve em prisão preventiva até ser julgado e condenado recentemente. Em caso de bom comportamento, poderá ser libertado ao fim de ano e meio, conforme se diz aqui, pela mão de Pedro Arroja (Portugal Contemporâneo). Mas a sua conclusão é que merece ser lida. E arquivada no lixo.
«Eu lamento a sorte deste nosso compatriota. Tanto mais quanto é certo que, se fosse em Portugal, nada lhe teria acontecido. Em primeiro lugar, o camionista permaneceria em liberdade. Depois, o processo demoraria pelo menos cinco anos, talvez dez. No final, é bem provável que o tribunal viesse a apurar que a culpa do acidente pertenceu por inteiro à condutora do veículo abalroado, a qual, juntamente com a sua família, morreu na sequência do acidente.» Espero que isto não tenha sido para fazer graça, porque daria uma péssima ideia do autor.
Portanto, ele lamenta a sorte do camionista e acha que nada lhe teria acontecido se fosse cá? Qualquer um de nós lamenta a tragédia, isso sim, e não sei se podemos achar o mesmo. O homem começaria por aguardar julgamento em liberdade? Talvez: se não houvesse perigo de fuga ou de continuidade do crime, é natural. O processo levaria cinco ou dez anos até ao julgamento? Não é preciso exagerar: todos os dias são concluídos processos sem grande complexidade que levaram um ou dois anos, até menos. Por fim, o tribunal decidiria que a culpa fôra das vítimas? Aqui é que Pedro Arroja torce a história e a porca torce o rabo.
Ele não sabe o que diz. Ou sabe e faz de conta que não, o que é pior. A Justiça pode ter muitos defeitos: será lenta (a primeira instância está hoje na média dos países europeus e os tribunais superiores são os mais céleres da Europa) e até será benevolente nas penas (a moldura penal não é obra do poder judicial, mas do poder legislativo). Agora, o que ninguém pode dizer de boa-fé é que os tribunais em geral não julgam bem e, menos ainda, que preferem absolver culpados se puderem condenar mortos. Além de má-fé e de pôr em causa a qualidade dos julgamentos em Portugal, a afirmação revela muito mau gosto.
Vai ser preciso Pedro Arroja vasculhar muitas toneladas de papel para encontrar algum mau julgamento que um recurso não tenha corrigido. E jamais encontrará um que lhe permita concluir que os juízes seguiram a lei do menor esforço, absolvendo um culpado evidente para atribuir culpas a quem já não pudesse defender-se. Com uma vantagem para o nosso sistema: temos dois patamares de recurso, dupla garantia de um bom julgamento, coisa que os ingleses não têm.
Insisto: estamos a falar da qualidade dos julgamentos e não de outra coisa qualquer. Às vezes, a mão foge-nos e acaba por tramar quem quer escrever e não sabe o que dizer. Mais vale segurar a mão: é deixá-la ir devagarinho e aproveitar para pensar um bocado. Se calhar, no fim já nem se publica, por elementar decência.