Rasgos (22)
ARTE POÉTICA
Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar e que a morte
Que a nossa carne teme é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.
Ver em cada dia ou ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Em música, rumor e símbolo.
(...)
Às vezes pela tarde há uma cara
Que nos olha do fundo de um espelho
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao avistar a sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.
(...)
Jorge Luís Borges, in Obra Poética
(Nota: tradução minha, com as devidas desculpas ao Mestre pela ousadia e pela liberdade de truncar um poema sublime)