Os filmes da minha vida (13)
TAXI DRIVER:
NO CORAÇÃO DAS TREVAS
Qual é a diferença entre um vilão e um herói num mundo onde todas as barreiras morais foram transpostas e as tradicionais fronteiras entre o bem e o mal estão diluídas? Esta é a pergunta-chave de Taxi Driver, um filme que não cessa de nos perseguir noite fora, anos fora. Vê-lo uma vez é vê-lo para sempre: jamais nos libertaremos daquela atmosfera viscosa de Nova Iorque, daquelas ruas onde se exibe a devassidão, daqueles vidros embaciados que nos transmitem a imagem de uma cidade que é a antítese perfeita de um bilhete postal.
Viajamos num táxi conduzido por Travis Bickle, ex-veterano de guerra que combate a insónia de mãos no volante enquanto anseia por um dilúvio que «lave toda a porcaria das ruas».
Nunca Nova Iorque pareceu tão irreal como neste filme só aparentemente realista: porque afinal a vemos sempre pelo olhar desfocado dum ex-fuzileiro de 26 anos que guia sem destino ao som da banda sonora de Bernard Herrmann - compositor de Alfred Hitchcock -, falecido horas após concluir esta magnífica partitura que lhe serviu de testamento.
«Não consigo dormir», diz o taxi driver que Robert de Niro interpreta com uma intensidade quase dolorosa, como se fosse o último papel da sua vida.
Perguntam-lhe por habilitações literárias. «Algumas.»
Tem a folha limpa? «Tão limpa como a minha consciência.»
Horário? Qualquer serve: das seis da tarde às seis da manhã, «às vezes até às oito». Seis dias por semana, «às vezes sete».
A noite funciona como cenário quase exclusivo desta espécie de western urbano a que só a fugaz aparição luminosa de Betsy (Cybill Shepherd) confere um toque de claridade. Travis vê-a vestida de branco, «pura como um anjo», na sede de campanha do senador Charles Palantine, candidato à Casa Branca com o demagógico slogan «Nós somos o povo». Ele acabará por ser um dos seus passageiros ocasionais. «Aprendi mais sobre este país a andar de táxi do que em todas as limusinas», garante Palantine, que há-de conseguir a nomeação.
Passageiro bem diferente é o marido enganado, interpretado pelo próprio realizador, Martin Scorsese, noutro momento inesquecível deste filme: fá-lo estacionar à porta de um prédio onde está a mulher, que o trai «com um preto», e revela que há-de matá-la com uma Magnum 44.
«Esgoto a céu aberto», a Nova Iorque de Taxi Driver.
Outro motorista, mais cínico e mais sábio, dá-lhe uma saraivada de bons conselhos: «Sai, embebeda-te, leva uma mulher para a cama. Não te rales tanto. Descontrai.»
Mas este é um idioma estranho a Travis, que deixou uma parte de si mesmo no Vietname e conserva apenas uma memória distante dos pais, a quem envia um lacónico postal sem remetente, esquecido já das datas de todos os aniversários.
Nós vamos com ele, vendo os néons faiscar à nossa volta na cidade que nunca dorme.
É uma viagem ao coração das trevas, onde não se vislumbra o povo do demagogo Balantine: só «chulos, drogados, prostitutas, travestis», exploradores de carne humana. Travis Bickle, "misto de São Paulo e Charles Manson" (a definição é do próprio Scorsese), vê ali, quarteirão após quarteirão, o sucedâneo dos vietcong que não conseguiu vencer na selva da Indochina. Rapa o cabelo, arma-se até aos dentes, mergulha numa orgia de violência contra uma guerrilha imaginária, confundindo as ruas do Bronx com o trilho de Ho Chi Minh. Reserva a última bala para si próprio, mas por um capricho do acaso a arma não dispara.
É quanto basta para a imprensa o proclamar herói: ganha direito aos 15 minutos de fama que nunca ambicionou. «Os jornais têm a mania de exagerar», diz para Betsy na última vez que falam antes do desencontro definitivo.
Taxi Driver jamais poderia ter um happy ending: este é o mais inclemente, perturbante e devastador filme que conheço sobre a solidão e a absoluta impossibilidade de se ser feliz.
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Taxi Driver, 1976. Realizador: Martin Scorsese. Principais intérpretes: Robert de Niro, Cybill Shepherd, Jodie Foster, Peter Boyle, Harvey Keitel, Albert Brooks.