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Delito de Opinião

Convidado: BRUNO VIEIRA AMARAL

Pedro Correia, 19.08.10

 

Quando eu era pequeno, e ia para a cama cedinho, a minha mãe lia-me histórias bíblicas, inoculando-me, sem o saber, criacionismo e maus costumes. Em nenhum outro livro a expressão "dormir com os anjos" é sinónimo de uma noite pouco sossegada. Conheci Noé e a sua epopeia de meteorologia e construção naval, torci pelo sucesso da Torre de Babel (um relato em que linguística e construção civil se unem) e abominei Abraão, um daqueles tipos que só dá jeito conhecer quando o negócio é fundar uma religião universal ou degolar um filho. Mas uma das minhas histórias preferidas é relativamente obscura. Pode ser encontrada no livro de Juízes e envolve profecias, ajudas divinas e um dos melhores homicídios da história da literatura. Naquele tempo, Débora, juíza e oráculo, garantiu a Baraque (calma, calma) que Deus lhe daria a vitória sobre uma tribo inimiga liderada por Sisera (era um homem). E assim aconteceu. O exército de Sísera foi derrotado mas este fugiu para a tenda de uma família com a qual (julgava ele) estava em paz. Foi recebido por Jael, mulher de Héber, que logo o convidou a entrar. Ele pediu-lhe água e silêncio, Jael deu-lhe leite e uma manta. Quando Sísera dormia o sono dos ímpios, Jael pegou numa das estacas da tenda e, com um martelo, cravou-a na cabeça do homem até ao chão, eliminando um inimigo e, mais importante, ajudando a manter o registo imaculado da profetisa Débora. Da Bíblia protestante da minha  mãe não fazia parte o livro de Judite, mas é neste livro que encontramos a releitura da história de Jael. Graças a Goya e a Caravaggio, a história de Judite é mais conhecida mas o elemento central é comum: a mulher que mata o líder do inimigo, neste caso, Holofernes. O acto de Judite, mais do que o de Jael, terá sido uma das inspirações de Charlotte Corday. O crime que cometeu dirá mais do que o nome: a 13 de Julho de 1793, Charlotte assassinou Jean-Paul Marat, um dos mentores do Terror. Motivada por questões políticas e religiosas, Charlotte partiu de Caen para Paris e já na capital comprou uma faca. Após muitas insistências conseguiu aceder aos aposentos de Marat, onde o "amigo do povo" tomava um banho de imersão por causa de uma doença de pele. Após uma curta troca de palavras, Charlotte empunhou a faca e, com a mesma frieza de Jael e de Judite, cravou-a no coração do debilitado Marat. Quatro dias depois, Charlotte foi guilhotinada. Sinal dos tempos, o quadro de Jacques-Louis David sobre o assassínio de Marat ignora Charlotte. A atenção é toda para a vítima, que aqui é herói e mártir. Charlotte, ao contrário de Judite, não mereceu os louvores da grande arte. Também por esse motivo, a esta hora não haverá mães a transmitir aos filhos a história de Charlotte Corday e, para algum miúdo mais sensível à violência do Antigo Testamento e menos interessado na Revolução Francesa, Jael ainda será a heroína

 

 

Quadro: A Morte de Marat, de Jacques-Louis David (1793)

 

Bruno Vieira Amaral

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