Não há idade para a ingenuidade
A conversa podia ser interrompida: no essencial, as opiniões já foram expressas. Vou só prolongá-la mais um pouco porque pressinto em Ana Matos Pires o gosto, que partilho, de confrontar pontos de vista sem que nenhuma das partes sinta necessidade de impor o seu. Por mim, isto constitui fonte de genuíno prazer - redobrado, quando sucede, por ser cada vez menos frequente. Há demasiada gente na blogosfera a confundir debate com doutrinação ou com insulto, o que não chega sequer a irritar-me: apenas me entedia.
Propõe a Ana que não nos afastemos do cerne da questão. Vamos então ao essencial. E o essencial vem resumido nestas palavras do Rui Costa Pinto que peço emprestadas: ao ponto a que as coisas chegaram no chamado caso Freeport, tem que ficar bem claro "por que razão as perguntas a fazer a José Sócrates e afins estiveram sujeitas a uma negociação completamente esdrúxula". Na falta de um esclarecimento cabal, claro e completo, em que os jornalistas têm um papel essencial a desempenhar, reforçaremos a convicção de que "os inquéritos mais mediáticos têm sempre linhas de investigação muito peculiares". O que seria péssimo para a justiça. Direi mesmo mais: seria péssimo para a democracia.
Exigirmos menos que isto é contentarmo-nos com quase nada.
Tomei entretanto boa nota do que a Ana me disse. E permito-me destacar esta frase: "Não há idade para a ingenuidade." Como conjugar esta frase, no entanto, com uma outra sua em que classifica como "pretensioso" o facto de eu ter invocado o caso Watergate?
A questão, Ana, é que a minha geração foi irremediavelmente influenciada pelo caso Watergate. Mais: eu sonhei ser jornalista precisamente porque Watergate aconteceu. Dissequei-o nos mais ínfimos pormenores e na minha galeria de heróis figuram não só o duo Bob Woodward-Carl Bernstein (Robert Redford-Dustin Hoffman, na excelente versão cinematográfica de Alan J. Pakula) mas também Ben Bradlee, o director que confiou no talento e na sagacidade dos seus repórteres, e Katharine Graham, a proprietária de jornal que soube mostrar-se imune a todas as pressões. Incluindo as pressões da Casa Branca, reforçadas pela grosseria de Richard Nixon.
Dir-me-ão uma vez, dir-me-ão cem vezes: o caso Watergate é irrepetível. É escusado: quanto mais único, quanto mais insólito, quanto mais raro, mais me serve de referência. E continuará a ser o maior dos motivos por que um dia, já há muito tempo, decidi ser jornalista.
Ingenuidade, talvez. Dou-lhe razão: podemos ser ingénuos em qualquer idade.
Imagem: Dustin Hoffman e Robert Redford no filme Os Homens do Presidente (1976)