O essencial e o acessório
A Ana Matos Pires entendeu-me mal: eu não defendo que só os jornalistas devem debater as questões deontológicas ligadas ao exercício da profissão. Creio, aliás, que nunca o jornalismo foi tão debatido e escrutinado na praça pública: nada tenho a objectar a este facto, antes pelo contrário. Sucedesse o mesmo com os médicos - um exemplo a que ela alude de passagem - e provavelmente todos teríamos a ganhar com isso.
O que eu escrevi, e reitero, é que este debate surge recorrentemente sempre que o actual primeiro-ministro é alvo de uma investigação jornalística. Já não tenho idade para ser ingénuo e percebo bem onde muitos querem chegar com a invocação dos princípios deontológicos do jornalismo nestas ocasiões cirurgicamente escolhidas para o efeito. A intenção é óbvia: condicionar os jornalistas, as respectivas chefias e - em última análise - as próprias entidades patronais.
Esquecem estes arautos da deontologia jornalística que o jornalista não tem só deveres: tem também direitos. O mais elementar desses direitos - que é um direito-dever, de carácter imperativo, aos quais todos os restantes se subordinam - é o direito de informar. Relacionado com este, há o direito dos cidadãos a serem informados. Subentende-se, obviamente, que me refiro ao dever de informar com rigor e ao direito a tomar conhecimento de factos verdadeiros.
Só a título de exemplo: suponha a Ana que um seu colega de blogue, indignado com a conduta dos procuradores titulares da investigação do caso Freeport e sem estar ao corrente de todos os factos, defendia a abertura imediata de um processo disciplinar aos referidos magistrados com vista ao despedimento de ambos com justa causa. Suponha que a indignação dele iria ao ponto de lhes negar a presunção da inocência. Suponha que estas indignadas linhas eram escritas antes de se saber que esses magistrados pretenderam questionar mesmo o primeiro-ministro, não lhes tendo sido dada oportunidade para tal, e que o facto de as perguntas sem resposta figurarem no despacho que assinam resultar afinal de uma negociação com a directora do Departamento de Investigação e Acção Penal, uma superiora hierárquica.
Moral da história: os equívocos manter-se-iam e os textos de indignação sem fundamento suceder-se-iam se não houvesse jornalistas a cumprir o direito-dever de informar. Tal como o caso Watergate nos ensinou, conhecer a identidade do 'Garganta Funda' e saber a que horas de que dias Bob Woodward falou com ele eram questões interessantíssimas - mas secundárias. O dever essencial de Woodward e do seu colega Carl Bernstein era informar. Foi isso que fizeram. E fizeram bem.